quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Capítulos 2

Jaime


Arya


Dany


Bran


Davos


Jon


Dany


Sansa





Sansa

a manhã em que seu novo vestido devia ficar pronto, as criadas encheram a banheira de Sansa com água quente fumegante e esfregaram-na dos pés à cabeça até a deixarem rosada e reluzente. A própria aia da rainha tratou de suas unhas e escovou e ondulou seus cabelos ruivos para que caíssem por suas costas em suaves caracóis, Trouxe também uma dúzia das essências que Cersei preferia. Sansa escolheu uma fragrância viva e doce, com um toque de limão sob o cheiro de flores, A aia despejou um pouco no dedo e tocou Sansa atrás de cada orelha, e sob o queixo, e então, levemente, nos mamilos. A própria Cersei chegou com a costureira e ficou vendo enquanto vestiam Sansa com sua roupa nova. A roupa de baixo era toda de seda, mas o vestido era de samito cor de marfim e pano de prata, forrado de cetim prateado. As extremidades de suas longas mangas pontiagudas quase tocavam o chão quando baixava os braços, E era um vestido de mulher, não de menina, não havia dúvida quanto a isso. O corpete era aberto na frente, quase até a barriga, com o profundo "v" coberto por um painel de ornamentada renda de Myr num cinza-claro. As saias eram longas e cheias, a cintura era tão apertada que Sansa teve de prender a respiração quando a amarraram. Trouxeram- -lhe também sapatos novos, chinelos de suave pele de corça cinza que abraçavam seus pés como amantes. - Está muito bela, senhora - disse a costureira quando acabaram de vesti-la. - Estou, não estou? - Sansa soltou um risinho e girou, fazendo rodopiar as saias ao seu redor. - Oh, estou. - Mal podia esperar que Willas a visse assim. Ele vai me amar, vai mesmo, tem de amar... esquecerá Winterfell quando me vir, vou me certificar de que esqueça. A Rainha Cersei estudou-a criticamente. - Algumas pedras preciosas, acho. As pedras de lua que Joffrey lhe deu. - Imediatamente, Vossa Graça - respondeu a aia. Depois de as pedras de lua estarem penduradas nas orelhas de Sansa e em seu pescoço, a rainha fez um aceno com a cabeça,  N
- Sim. Os deuses foram bons para você, Sansa. E uma menina adorável. Parece quase obsceno esbanjar essa doce inocência naquela gárgula. - Que gárgula? - Sansa não estava compreendendo. Estaria se referindo a Willas? Como poderia saber? Ninguém sabia além dela, de Margaery e da Rainha dos Espinhos... ah, e Dontos, mas esse não contava. Cersei Lannister ignorou a pergunta. - O manto - ordenou, e as mulheres trouxeram-no: um longo manto de veludo branco carregado de pérolas, Um feroz lobo gigante estava bordado nele em fio de prata. San- sa olhou-o com súbito temor. - As cores de seu pai - disse Cersei, enquanto o prendiam em volta do pescoço da garota com uma delicada corrente de prata. Um manto de donzela. A mão de Sansa subiu à garganta. Teria arrancado aquela coisa se se atrevesse. - E mais bonita com a boca fechada, Sansa - disse-lhe Cersei, - Venha já, o septão está à espera. E os convidados do casamento também. - Não - exclamou Sansa, - Não. - Sim. E protegida da coroa. O rei faz as vezes de seu pai, uma vez que seu irmão é um traidor proscrito. Isso significa que tem todo o direito de dispor de sua mão. Vai se casar com meu irmão Tyrion. A minha pretensão, pensou, agoniada. Dontos, o bobo, não era assim tão tolo, afinal; tinha visto a verdade. Sansa afastou-se da rainha. - Não vou. - Vou me casar com Willas, vou ser a senhora de Jardim de Cima, por favor... - Compreendo a sua relutância. Chore se precisar. Em seu lugar, eu provavelmente arrancaria os cabelos. Ele é um desprezível duendezinho, não há dúvida, mas vai mesmo se casar com ele. - Não pode me obrigar. - Claro que podemos. Pode vir calmamente e proferir seus votos como é próprio de uma senhora, ou pode lutar, gritar e dar um espetáculo que deixe os cavalariços aos risi- nhos, mas seja como for vai acabar casada e na cama com o seu esposo. - A rainha abriu a porta. Sor Meryn Trant e Sor Osmund Kettleblack esperavam lá fora, com a armadura de escamas brancas da Guarda Real. - Escoltem a Senhora Sansa até o septo - disse- -lhes. - Carreguem-na, se for preciso, mas tentem não rasgar o vestido. Foi muito caro. Sansa tentou fugir, mas a aia de Cersei apanhou-a antes de ter percorrido um metro. Sor Meryn Trant dirigiu-lhe um olhar que a fez encolher-se de medo, mas Kettleblack tocou quase gentilmente nela e disse: - Faça o que lhe dizem, querida, não será assim tão mau. Espera-se que os lobos sejam bravos, não é?
Bravos. Sansa respirou fundo. Eu sou uma Stark, sim, posso ser brava. Estavam todos a observá-la daquela maneira como a tinham olhado no pátio, no dia em que Sor Boros Blount rasgara sua roupa. Nesse dia foi o Duende quem a salvou de um espancamento, o mesmo homem que estava agora à sua espera, Ele não é tão mau quanto os outros, disse a si mesma. - Eu vou. Cersei sorriu. - Eu sabia que sim. Mais tarde não conseguiria se lembrar de ter saído do quarto, de descer os degraus ou de atravessar o pátio. O simples ato de pôr um pé à frente do outro pareceu tomar toda a sua atenção. Sor Meryn e Sor Osmund caminhavam ao seu lado, usando mantos tão claros quanto o seu, faltando-lhes apenas as pérolas e o lobo gigante que fora de seu pai. O próprio JofFrey encontrava-se à sua espera, nos degraus do septo do castelo. O rei resplandecia de carmesim e ouro, com a coroa na cabeça. - Hoje sou seu pai - anunciou. - Não é - irritou-se ela. - Nunca será. O rosto do rei ensombrou-se. - Sou. Sou seu pai, e posso casá-la com quem eu desejar. Com qualquer um. Casará com um criador de porcos, se eu ordenar, e vai se deitar com ele na pocilga. - Seus olhos verdes cintilaram de divertimento. - Ou talvez devesse dá-la a Ilyn Payne, gostaria mais dele? O coração de Sansa deu um salto. - Por favor, Vossa Graça - suplicou. - Se alguma vez me amou nem que fosse um pouquinho, não me obrigue a casar com seu... - ... tio? - Tyrion Lannister atravessou as portas do septo. - Vossa Graça - disse a JofFrey. - Tenha a gentileza de me conceder um momento a sós com a Senhora Sansa, por favor. O rei estava prestes a recusar, mas a mãe lançou-lhe um olhar penetrante. Afastaram- -se alguns metros. Tyrion vestia um gibão de veludo negro coberto de arabescos dourados, botas cujos canos chegavam às suas coxas e que acrescentavam sete centímetros à sua altura, uma corrente de rubis e cabeças de leão. Mas o rasgão em seu rosto estava vermelho e em carne viva, e o nariz era uma hedionda escara. - Está muito bela, Sansa - disse-lhe. - E bondade sua, senhor. - Não sabia o que mais responder. Deveria dizer-lhe que é bonito? Vai me achar uma tola ou uma mentirosa. Baixou os olhos e dominou a língua. - Senhora, isso não é maneira de trazê-la para o seu casamento, peço-lhe perdão. E por fazer isso de forma tão súbita e secreta. O senhor
meu pai achou necessário, por razões de estado. De outra forma, teria ido encontrá-la mais cedo, conforme eu desejava. - Bamboleou-se para mais perto. - Não pediu este casamento, eu sei. Eu também não. Mas se a tivesse recusado, eles teriam casado a senhora com meu primo Lancei. Talvez tivesse preferido assim. Ele tem uma idade próxima da sua, e é mais bonito de se ver. Se for esse seu desejo, diga, e eu porei fim a esta farsa. Não quero nenhum Lannister, ela quis dizer. Quero Willas, quero Jardim de Cima, os cachorros e a barcaça, e filhos chamados Eddard, Bran e Rickon. Mas então lembrou-se do que Dontos havia lhe dito no bosque sagrado. Tyrell ou Lannister, não faz diferença, não é a mim que querem, é só a minha pretensão. - E gentil, senhor - disse, derrotada. - Sou protegida da coroa e meu dever é casar segundo as ordens do rei, Ele estudou-a com seus olhos desiguais. - Eu sei que não sou o tipo de esposo com que as garotas sonham, Sansa - disse, com suavidade -, mas também não sou JofFrey. - Não - disse ela, - Foi gentil comigo. Eu me lembro. Tyrion ofereceu-lhe uma mão grossa de dedos curtos. - Então venha. Vamos cumprir o nosso dever. E assim ela pousou a mão na dele e ele levou-a até o altar nupcial, onde o septão esperava entre a Mãe e o Pai para unir suas vidas, Sansa viu Dontos, com o seu traje de bobo, olhando-a com grandes olhos redondos. Sor Balon Swann e Sor Boros Blount encontravam-se lá, ostentando o branco da Guarda Real, mas Sor Loras não. Nenhum dos Tyrell está aqui, compreendeu de repente. Mas havia fartura de outras testemunhas; o eunuco Varys, Sor Addam Marbrand, Lorde Philip Foote, Sor Bronn, Jalabhar Xho, uma dúzia de outros. Lorde Gyles tossia, a Senhora Ermesande mamava, e a filha grávida da Senhora Tanda soluçava por nenhum motivo aparente. Que soluce, pensou Sansa. Eu talvez faça o mesmo antes que este dia acabe. A cerimônia passou como que num sonho. Sansa fez tudo o que lhe foi pedido. Houve preces, votos e cânticos, e grandes velas queimando, uma centena de luzes dançantes, que as lágrimas em seus olhos se transformaram num milhar, Felizmente, ninguém pareceu reparar que ela estava chorando enquanto se encontrava ali, em pé, envolvida nas cores do pai; ou se viram, fingiram não ver. Naquilo que pareceu não ser tempo algum, chegaram à troca dos mantos. Na condição de pai do reino, Joffrey ocupou o lugar de Eddard Stark. Sansa permaneceu dura como uma lança enquanto as mãos dele passaram sobre seus ombros para lutar contra o broche de seu manto. Uma delas roçou num seio e demorou-se lá, para lhe dar um pequeno
apertão. Então o broche abriu-se, e JofF tirou seu manto de donzela com um floreado régio e um sorriso. A parte do tio não correu tão bem. O manto de noiva que segurava era enorme e pesado, de veludo carmesim ricamente trabalhado com leões e debruado de cetim dourado e rubis, Mas ninguém havia se lembrado de trazer um banco, e Tyrion era meio metro mais baixo do que sua noiva. Quando ele se colocou atrás dela, Sansa sentiu um forte puxão na saia. Ele quer que eu ajoelhe, compreendeu, corando. Ficou mortificada. Não deveria ser assim. Sonhara mil vezes com seu casamento, e em todas elas imaginara o modo como seu noivo ficaria atrás dela, alto e forte, envolveria majestosamente seus ombros com o manto de sua proteção, e a beijaria ternamente no rosto ao debruçar-se para a frente, a fim de lhe prender o broche, Sentiu outro puxão na saia, mais insistente. Não farei isso. Por que devo poupar os sentimentos dele, quando ninguém se preocupa com os meus? O anão puxou-a pela terceira vez. Teimosamente, apertou os lábios e fingiu não reparar. Alguém atrás deles soltou um riso abafado. A rainha, pensou, mas não importava. Pouco depois estavam todos rindo, ninguém mais alto do que Joffrey. - Dontos, de quatro - ordenou o rei. - Meu tio precisa de ajuda para subir até sua noiva. E foi assim que o senhor seu esposo a cobriu com um manto nas cores da Casa Lannister enquanto se empoleirava nas costas de um bobo. Quando Sansa se virou, o homenzinho fitava-a, de boca contraída, com o rosto tão vermelho quanto seu manto. De repente, sentiu-se envergonhada por sua teimosia. Ali- sou as saias e ajoelhou-se diante de Tyrion, para que as cabeças ficassem no mesmo nível. - Com este beijo empenho o meu amor, e o tomo como meu senhor e esposo. - Com este beijo empenho o meu amor - respondeu o anão em voz rouca - e a tomo como minha senhora e esposa. - Debruçou-se para a frente, e os lábios tocaram- -se brevemente. Ele é tão feio, pensou Sansa quando o rosto dele se aproximou do seu, E ainda mais feio do que o Cão de Caça. O septão ergueu bem alto seu cristal, para que a luz arco-íris caísse sobre os dois. - Aqui, à vista dos deuses e dos homens - disse proclamo solenemente que Tyrion da Casa Lannister e Sansa da Casa Stark são marido e mulher, uma carne, um coração, uma alma, agora e sempre, e maldito seja quem se interpuser entre eles. Teve de morder o lábio para náo soluçar.
O banquete de casamento foi servido no Pequeno Salão. Havia talvez cinqüenta convidados; a maioria servidores e aliados dos Lannister, juntando-se àqueles que tinham estado no casamento. E ali Sansa encontrou os Tyrell. Margaery olhou-a de um modo cheio de tristeza, e quando a Rainha dos Espinhos entrou, vacilante, entre o Esquerdo e o Direito, sequer a olhou. Elinor, Alia e Megga pareciam determinadas a não conhecê-la. Minhas amigas, pensou Sansa amargamente. Seu esposo bebeu muito e quase não comeu. Escutava sempre que alguém se levantava para fazer um brinde, e às vezes fazia um brusco aceno de apreço, mas fora isso daria para dizer que seu rosto era feito de pedra. O banquete pareceu prolongar-se sem fim, embora Sansa não tivesse provado nada da comida. Queria que aquilo acabasse, e no entanto temia o seu fim. Pois, após o banquete, vinha a noite de núpcias. Os homens iriam levá-la para sua cama nupcial, despindo-a no caminho e fazendo piadas grosseiras sobre aquilo que a aguardava entre os lençóis, enquanto as mulheres prestariam a Tyrion o mesmo serviço. Só depois de serem enfiados nus na cama é que os deixariam sós, e mesmo então os convidados permaneceriam à porta do aposento nupcial, gritando para dentro sugestões obscenas. A noite de núpcias parecera maravilhosamente maliciosa e excitante quando Sansa era garota, mas, agora que o momento estava quase chegando, sentia apenas terror. Não achava que seria capaz de suportar que arrancassem sua roupa, e estava certa de que rebentaria em lágrimas à primeira brincadeira lúbrica. Quando os músicos começaram a tocar, Sansa apoiou timidamente a mão sobre a de Tyrion e disse: - Senhor, lideramos o baile? A boca dele torceu-se. - Acho que já lhes demos divertimento suficiente para uma noite, não acha? - Como quiser, senhor. - Retirou a mão. Em vez deles, JofFrey e Margaery lideraram. Como é possível que um monstro dance de forma tão bela?, perguntou Sansa a si mesma. Tinha sonhado acordada muitas vezes sobre o modo como dançaria em seu casamento, com todos os olhos postos em si e em seu belo senhor. Nos sonhos, estavam todos sorrindo. Nem sequer o meu esposo sorri Outros convidados rapidamente se juntaram ao rei e à sua prometida. Elinor dançou com seu jovem escudeiro, e Megga, com o Príncipe Tommen, A Senhora Merryweather, a bela myrana de cabelos negros e grandes olhos escuros, girava tão provocantemente que em pouco tempo todos os homens presentes no salão a observavam. O Senhor e a Senhora Tyrell moviam-se mais calmamente, Sor Kevan Lannister pediu a honra à Senhora Janna Fossoway, irmã de Lorde Tyrell, Merry Crane
juntou-se aos dançarinos com o príncipe exilado Jalabhar Xho, magnífico em seus adornos de penas. Cersei Lannister fez par primeiro com Lorde Redwyne, depois com Lorde Rowan, e por fim com o próprio pai, que dançava com uma graça fluida e séria, Sansa ficou sentada com as mãos no colo, observando o modo como a rainha se movia, ria e sacudia os louros caracóis, Ela encanta a todos, pensou, entorpecida. Cowo eu a odeio. Afastou o olhar, dirigindo-o para onde o Rapaz Lua dançava com Dontos. - Senhora Sansa. - Sor Garlan Tyrell estava em pé junto ao estrado. - Dá-me a honra? Se o seu senhor consentir? Os olhos desiguais do Duende estreitaram-se. - A minha senhora pode dançar com quem quiser. Talvez devesse ter permanecido ao lado do marido, mas queria tanto dançar,., e Sor Garlan era irmão de Margaery, de Willas, de seu Cavaleiro das Flores, - Vejo por que lhe chamam Garlan, o Galante, sor - disse, ao pegar na mão dele. - E muito amável por dizer isso, minha senhora. Foi meu irmão Willas quem me deu esse nome, por acaso. Para me proteger. - Para protegê-lo? - Sansa dirigiu-lhe um olhar confuso. Sor Garlan soltou uma gargalhada. - Eu era um menininho rechonchudo, temo eu, e nós temos um tio chamado Garth, o Grosseiro. Por isso Willas atacou primeiro, não sem antes me ameaçar com Garlan, o Galo, Garlan, o Gatuno e Garlan, a Gárgula. Aquilo era tão encantador e inocente que Sansa foi obrigada a rir, apesar de tudo. Depois, sentiu-se absurdamente grata. Sem saber como, o riso tinha lhe dado de novo esperança, ainda que por pouco tempo. Sorrindo, deixou que a música a dominasse, perdendo-se nos passos, no som de flauta, gaita de foles e harpa, no ritmo do tambor... e de tempos em tempos nos braços de Sor Garlan, quando a dança os juntava. - A senhora minha esposa está muito preocupada com a senhora - disse ele em voz baixa numa dessas vezes. - A Senhora Leonette é bondosa demais. Diga-lhe que estou bem. - Uma noiva no seu casamento devia estar mais do que bem. - A voz dele não era desprovida de gentileza. - Parecia à beira das lágrimas. - Lágrimas de alegria, sor. - Seus olhos revelam a mentira de sua língua. - Sor Garlan virou-a, puxou-a para o seu lado. - Senhora, vi como olha para meu irmão. Loras é valente e bonito, e todos o amamos muito... mas o seu Duende será melhor marido. Ele é um homem maior do que parece, penso eu.
A música afastou-os antes de Sansa conseguir pensar numa resposta. Foi Mace Tyrell quem surgiu à sua frente, com o rosto vermelho e suado, e depois Lorde Merryweather, e depois o Príncipe Tommen. - Também quero me casar - disse o rechonchudo principezinho, que tinha nove anos. - Sou mais alto do que o meu tio! - Eu sei que é - disse Sansa, antes de os pares voltarem a trocar. Sor Kevan disse-lhe que estava bela, Jalabhar Xho disse qualquer coisa na Língua do Verão que ela não compreendeu, e Lorde Redwyne desejou-lhe muitas crianças gordas e longos anos de alegria. E então a dança deixou-a cara a cara com Joffrey. Sansa retesou-se quando a mão dele tocou na dela, mas o rei apertou sua mão e puxou-a para si. - Não devia estar com um ar tão triste. Meu tio é uma coisinha feia, mas você ainda terá a mim. - O senhor irá se casar com Margaery! - Um rei pode ter outras mulheres. Prostitutas. Meu pai teve. Um dos Aegon também. O terceiro ou o quarto. Teve um monte de prostitutas e um monte de bastardos. - Enquanto rodopiavam ao som da música, JofF deu-lhe um beijo úmido. - Meu tio vai trazê-la à minha cama sempre que eu ordenar, Sansa balançou a cabeça. - Não vai. - Vai, senão corto a cabeça dele, Esse Rei Aegon, ele tinha todas as mulheres que desejava, quer fossem ou não casadas. Felizmente, era hora de mudar mais uma vez. Mas suas pernas tinham se transformado em madeira, e Lorde Rowan, Sor Tallad e o escudeiro de Elinor devem tê-la achado uma dançarina muito desajeitada. E então viu-se de novo com Sor Garlan, e pouco depois, abençoadamente, a dança terminou. O alívio foi curto. Assim que a música acabou, ouviu JofFrey dizer: - Está na hora de levá-los para a cama! Vamos tirar a roupa dela e dar uma passada de olhos no que a loba tem a dar ao meu tio! - Outros homens juntaram-se ruidosamente ao grito, O anão seu marido ergueu lentamente os olhos da taça de vinho. - Não haverá nada de noite de núpcias. JofFrey agarrou o braço de Sansa. - Haverá, se eu ordenar. O Duende espetou violentamente o punhal na mesa, onde ficou vibrando, e disse: - E depois vai ter de servir a sua mulher com um cacete de madeira. Eu castro você, juro.
Caiu um pesado silêncio. Sansa tentou libertar-se de JofFrey, mas ele tinha-a bem agarrada e sua manga rasgou. Ninguém pareceu sequer ouvir. A Rainha Cersei virou-se para o pai. - Ouviu o que ele disse? Lorde Tywin levantou-se da cadeira. - Acho que podemos dispensar a noite de núpcias. Tyrion, tenho certeza de que não pretendia ameaçar a pessoa do rei. Sansa viu um espasmo de raiva percorrer o rosto do marido. - Expressei-me mal - disse. - Foi uma brincadeira de mau gosto, senhor. - Ameaçou me castrar! - disse JofFrey com uma voz esganiçada. - Ameacei, Vossa Graça - disse Tyrion -, mas foi só por invejar o seu régio membro. O meu é tão pequeno e torto... - Seu rosto contorceu-se num olhar malicioso. - E se cortar minha língua, não me deixará nenhuma maneira de dar prazer a esta encantadora esposa que me deu. Uma gargalhada explodiu dos lábios de Sor Osmund Kettleblack. Alguém soltou um risinho abafado. Mas JofF não riu, e Lorde Tywin também não. - Vossa Graça - disse este -, meu filho está bêbado, pode constatar o fato, - Estou - confessou o Duende -, mas não tão bêbado que não possa tratar da minha noite de núpcias. - Saltou do estrado e agarrou Sansa rudemente. - Venha, mulher, é hora de derrubar a sua porta levadiça. Quero brincar de entrar no castelo, Corada, Sansa saiu com ele do Pequeno Salão. Que escolha tenho? Tyrion bamboleava- -se ao caminhar, especialmente quando caminhava tão depressa quanto agora. Os deuses eram misericordiosos, e nem JofFrey nem nenhum dos outros fez um movimento para segui-los. Para a noite de núpcias, tinham-lhes concedido o uso de um quarto arejado no alto da Torre da Mão. Tyrion fechou a porta com um pontapé depois de entrarem. - Há um jarro de bom dourado da Árvore no aparador, Sansa. Quer fazer a gentileza de me servir uma taça? - Será isso sensato, senhor? - Não há nada mais sensato. Não estou realmente bêbado, compreende? Mas pretendo ficar. Sansa encheu uma taça para cada um. Será mais fácil se eu também estiver bêbada. Sentou-se na beira da grande cama de dossel e ingeriu metade do conteúdo de sua taça em três longos goles. Sem dúvida que o vinho era muito bom, mas estava nervosa demais para saboreá-lo. A bebida deixou sua cabeça flutuando. - Quer que eu tire minhas roupas, senhor? - Tyrion. - Ele ergueu a cabeça. - Meu nome é Tyrion, Sansa.
- Tyrion. Senhor. Devo tirar o vestido, ou quer me despir? - bebeu mais um gole de vinho. O Duende virou as costas para ela. - Da primeira vez que me casei, fomos só nós e um septão bêbado, e alguns porcos como testemunhas. Comemos uma das testemunhas no banquete de casamento. Tysha deu na minha boca pele torrada de porco assado e eu lambi a gordura dos dedos dela, e estávamos rindo quando caímos na cama, - Foi casado antes? Eu.„ eu tinha me esquecido, - Não esqueceu. Nunca soube. - Quem era ela, senhor? - a contragosto, Sansa sentia curiosidade. - A Senhora Tysha, - A boca dele torceu-se. - Da Casa Punho de Prata. As armas deles são uma moeda de ouro e cem de prata, num lençol ensangüentado. Nosso casamento foi muito curto... como é próprio de um homem muito baixo, suponho. Sansa fitou as mãos e nada disse. - Quantos anos você tem, Sansa? - perguntou Tyrion após um momento. - Treze - disse ela quando a lua virar. - Deuses, piedade. - O anão bebeu outro gole de vinho. - Bem, conversar não fará você ficar mais velha. Vamos tratar disso, senhora? Se for do seu agrado? - Será do meu agrado agradar ao senhor meu esposo. Aquilo pareceu enfurecê-lo. - Esconde-se atrás da cortesia como se fosse uma muralha de castelo. - A cortesia é a armadura de uma senhora - disse Sansa, Sua septã sempre lhe dizia isso. - Eu sou o seu marido. Agora pode tirar a armadura. - E a roupa? - Isso também. - Fez um gesto na direção dela com a taça de vinho. - O senhor meu pai ordenou-me que consumasse este casamento. As mãos de Sansa tremiam quando começou a remexer as roupas. Tinha dez pole- gares no lugar dos dedos, e todos estavam quebrados. Mas de algum modo conseguiu se desembaraçar dos nós e botões, e o seu manto, o vestido, o espartilho e a seda íntima deslizaram para o chão, até que por fim saiu de dentro da roupa de baixo. A pele de seus braços e pernas ficou arrepiada. Manteve os olhos no chão, tímida demais para olhá-lo, mas quando terminou, lançou-lhe um relance de olhos e viu-o a fitá-la. Havia fome no olho verde, pareceu a ela, e fúria no negro. Sansa não sabia qual dos dois a assustava mais. - É uma criança - disse ele. Ela cobriu os seios com as mãos. - Já floresci.
- Uma criança - repetiu ele mas desejo você. Isso a assusta, Sansa? - Sim. - A mim também. Eu sei que sou feio... - Não, sen... Ele ergueu-se. - Não minta, Sansa. Sou deformado, mutilado e pequeno, mas... - Sansa viu que ele procurava as palavras - ... na cama, depois das velas sopradas, não sou pior constituído do que os outros homens. No escuro, sou o Cavaleiro das Flores. - Bebeu um trago de vinho. - Sou generoso. Leal para com aqueles que me são leais. Provei que não sou covarde. E sou mais inteligente do que a maioria, decerto a esperteza deve contar para alguma coisa. Até posso ser bondoso. Temo que a bondade não seja um hábito entre nós, os Lannister, mas sei que tenho alguma, em algum lugar. Poderia ser... poderia ser bom para você. Ele está tão assustado quanto eu, percebeu Sansa. Isso talvez devesse tê-la deixado mais compreensiva para com ele, mas não a deixou. Tudo que sentiu foi pena, e a pena é a morte do desejo. O anão olhava-a, à espera de que dissesse alguma coisa, mas todas as suas palavras tinham murchado. Só conseguiu ficar ali, em pé, tremendo. Quando finalmente compreendeu que ela não tinha uma resposta para lhe dar, Tyrion Lannister entornou o resto do vinho. - Compreendo - disse amargamente. - Vá para a cama, Sansa. Temos de cumprir o nosso dever. Ela subiu para o colchão de plumas, consciente de que ele a encarava. Uma vela perfumada de cera de abelha ardia na mesa de cabeceira e pétalas de rosas tinham sido espalhadas entre os lençóis. Tinha começado a puxar uma manta para se cobrir quando o ouviu dizer: - Não. O frio fazia-a tremer, mas obedeceu. Seus olhos fecharam-se, e esperou. Um momento depois, ouviu o som do marido descalçando as botas, e o roçagar de roupa enquanto se despia. Quando saltou para a cama e pôs uma mão no seu seio, Sansa não conseguiu evitar um estremecimento. Ficou de olhos fechados, com cada músculo tenso, aterrorizada com o que poderia vir em seguida. Ele voltaria a tocá-la? Iria beijá-la? Deveria abrir já as pernas para ele? Não sabia o que era esperado de si. - Sansa. - A mão tinha desaparecido. - Abra os olhos. Prometera obedecer; abriu os olhos, Ele estava sentado junto aos seus pés, nu, Onde as pernas se juntavam, seu bastão de homem erguia-se, teso e rijo, de uma mata de ásperos pelos amarelos, mas essa era a única coisa nele que era direita. - Minha senhora - disse Tyrion - E adorável, não duvide, mas... não posso fazer isso. Que se dane o meu pai. Esperaremos. A volta da lua,
um ano, uma estação, o tempo que for preciso. Até que me conheça melhor, e talvez confie um pouco em mim. - O sorriso podia pretender ser tranquilizador, mas sem nariz só o fazia parecer mais grotesco e sinistro. Olhe para ele, disse Sansa a si mesma, olhe para o seu marido, para todo ele, a Septã Mordane dizia que todos os homens são belos, encontre a beleza dele, tente. Fitou as pernas tortas, a testa inchada e animalesca, o olho verde e o negro, os restos em carne viva de seu nariz e a cicatriz irregular e rosada, o rude emaranhado de pelos amarelos e pretos que nele passava por barba. Até o seu membro viril era feio, grosso e cheio de veias, com uma cabeça bulbosa e roxa. Isso não está certo, isso não é justo, como terei pecado tanto para levar os deuses afazerem isso comigo, como? - Por minha honra como Lannister - disse o Duende -, juro não tocá-la até que queira que eu o faça. Precisou de toda a coragem que possuía para olhar aqueles olhos desiguais e dizer: - E se eu nunca quiser que faça isso, senhor? A boca dele contraiu-se como se o tivesse esbofeteado. - Nunca? - Sansa tinha o pescoço tão tenso que quase não conseguiu assentir. - Ora - disse ele é por isso que os deuses fazem as prostitutas, para duendes como eu. - Fechou seus dedos curtos e grossos num punho e saltou da cama.

Dany

- Todos? - a jovem escrava soava cautelosa. - Vossa Graça, os ouvidos sem valor desta ouviram-na mal? Uma luz fresca e verde filtrava-se pelos painéis de vidro colorido em forma de diamante montados nas paredes triangulares e inclinadas, e uma brisa soprava suavemente pelas portas do terraço, trazendo do jardim que nele crescia o cheiro de frutos e flores. - Seus ouvidos ouviram bem - disse Dany. - Quero comprar todos. Diga isso aos Bons Mestres, por favor. Naquele dia, havia escolhido um vestido qarteno. A seda de um tom profundo de violeta realçava a cor púrpura de seus olhos. O corte desnudava seu seio esquerdo. Enquanto os Bons Mestres de Astapor conferenciavam entre si em voz baixa, Dany bebericou vinho ácido de caqui de uma taça alta de prata. Não conseguia compreender tudo que eles estavam dizendo, mas ouvia a avidez. Cada um dos oito negociantes era servido por dois ou três escravos pessoais... embora um Grazdan, o mais velho, tivesse seis. Para não parecer uma pedinte, Dany tinha trazido seus próprios servidores; Irri e Jhiqui, com suas calças de sedareia e coletes pintados, o velho Barba-Branca e o poderoso Belwas, e seus companheiros de sangue. Sor Jorah encontrava-se atrás dela, sufocando em seu sobretudo verde com o urso negro de Mormont bordado. O cheiro do suor do cavaleiro era uma resposta terrena aos doces perfumes que ensopavam os astapori. - Todos - rosnou Kraznys mo Nakloz, que naquele dia cheirava a pêssegos. A jovem escrava repetiu a palavra no Idioma Comum de Westeros. - Milhares, temos oito. É isso que ela quer dizer com todos? Há também seis centenas, que farão parte de um nono milhar quando completas. Também as quer? - Quero - disse Dany quando a questão lhe foi colocada. - Os oito milhares, as seis centenas... e também os que ainda estão em treinamento. Aqueles que não conquistaram os espigões. Kraznys voltou a se virar para os seus companheiros. De novo conferenciaram entre si. A tradutora tinha dito a Dany seus nomes, mas era difícil guardá-los. Quatro dos homens pareciam se chamar Grazdan, presumivelmente em honra de Grazdan, o Grande, que fundara a Velha Ghis na aurora dos tempos. Todos eram parecidos; homens fortes e
carnudos, com pele ambarina, nariz largo e olhos escuros. Seus cabelos hirsutos eram negros, ou de um vermelho-escuro, ou daquela estranha mistura de ver- melho e negro que era característica dos ghiscari. Todos se enrolavam em tokars, uma vestimenta que só era autorizada aos homens livres de Astapor. O Capitão Groleo tinha dito a Dany que era o debrum do tokar que proclamava o estatuto de um homem. Naquela fresca sala verde no topo da pirâmide, dois dos negociantes de escravos usavam tokars debruados de ouro, e um deles, o Grazdan mais velho, exibia um debrum de grandes pérolas brancas que chocalhavam levemente quando ele se mexia no assento ou movimentava um braço. - Não podemos vender rapazes meio treinados - um dos Grazdan vestido em debrum de prata dizia aos outros. - Podemos, se o ouro dela for bom - disse um homem mais gordo, cujo debrum era de ouro. - Eles não são Imaculados. Não mataram seus bebês. Se falharem no campo de batalha, vão nos envergonhar. E mesmo se cortarmos cinco mil garotos crus amanhã, vão se passar dez anos até que estejam prontos para serem vendidos. O que diremos ao próximo comprador que vier em busca de Imaculados? - Diremos que precisa esperar - disse o gordo. - Ouro na minha bolsa é melhor do que ouro no meu futuro. Dany deixou-os discutir, bebericando do vinho ácido de caqui e tentando manter o rosto sem expressão, como se não entendesse nada do que diziam. Terei todos, seja qual for o preço, disse a si própria. A cidade tinha uma centena de negociantes de escravos, mas os oito que se encontravam diante dela eram os maiores. Quando vendiam escravos sexuais, trabalhadores rurais, escribas, artesãos e tutores, aqueles homens eram rivais, mas seus ancestrais tinham-nos aliado a fim de criar e vender os Imaculados. Tijolos e sangue construíram Astapor, e tijolos e sangue construíram o seu povo. Foi Kraznys quem finalmente anunciou a decisão. - Diga-lhe que obterá os oito milhares, se o seu ouro for suficiente. E as seis centenas, se desejar. Diga-lhe para voltar dentro de um ano, e venderemos a ela mais dois milhares. - Dentro de um ano estarei em Westeros - disse Dany depois de ouvir a tradução. - Preciso deles agora. Os Imaculados estão bem treinados, mesmo assim muitos caem em batalha. Preciso dos garotos como reforços para apanhar as espadas que caírem. - Pôs o vinho de lado e inclinou-se para a jovem escrava. - Diga aos Bons Mestres que quero até os pequenos que ainda têm seus cachorros. Diga-lhes que pagarei tanto
pelo rapaz que cortaram ontem como por um Imaculado com elmo de espigão. A moça disse-lhes. A resposta continuou a ser não. Dany franziu a testa, aborrecida. - Muito bem. Diga-lhes que pagarei o dobro, na condição de obter todos. - O dobro? - o gordo com o debrum de ouro por pouco não se babou. - Essa vadiazinha é realmente uma tola - disse Kraznys mo Nakloz. - Devíamos pedir o triplo. Ela está suficientemente desesperada para pagar. Sim, peçamos dez vezes o preço de cada escravo. O Grazdan alto com a barba pontiaguda falou no Idioma Comum, embora não tão bem quanto a jovem escrava. - Vossa Graça - rosnou Westeros está sendo rico, sim, mas você não está sendo rainha agora. Talvez nunca estará sendo rainha. Até Imaculados podem estar perdendo batalhas para selvagens cavaleiros de aço de Sete Reinos. Estou recordando, os Bons Mestres de Astapor não estão vendendo carne em troca de promessas. Está tendo ouro e bens de comércio suficientes para pagar por todos esses eunucos que está querendo? - Conhece a resposta para isso melhor do que eu, Bom Mestre - respondeu Dany. - Seus homens vasculharam meus navios e contaram cada conta de âmbar e frasco de açafráo. Quanto tenho eu? - Suficiente para comprar um dos milhares - disse o Bom Mestre, com um sorriso desdenhoso. - Mas vai pagar o dobro, está dizendo. Então, cinco centenas é tudo que compra. - Sua bonita coroa pode pagar outra centena - disse o gordo em valiriano. - A sua coroa dos três dragões. Dany esperou que as palavras dele fossem traduzidas. - Minha coroa não está à venda. - Quando Viserys vendeu a coroa da mãe, perdeu a alegria que lhe restava, sobrou apenas a raiva. - Nem escravizarei meu povo, nem venderei seus bens ou cavalos. Mas podem ficar com meus navios. A grande coca Balerion e as galés Vhagar e Meraxes. - Prevenira Groleo e os outros capitães de que podia chegar àquele ponto, embora eles tivessem contestado furiosamente a necessidade da venda. - Três bons navios devem valer mais do que um punhado de reles eunucos. O Grazdan gordo virou-se para os outros. Voltaram a conferenciar em voz baixa. - Dois dos milhares - disse o da barba pontiaguda quando voltou a se virar para ela. - E demais, mas os Bons Mestres estão sendo generosos e sua necessidade está sendo grande.
Dois mil nunca serviriam para aquilo que queria fazer. Tenho de obter todos. Dany sabia o que tinha de fazer naquele momento, embora o sabor fosse tão amargo que nem mesmo o vinho de caqui conseguia tirá-lo de sua boca. Refletira longa e duramente, e não havia encontrado outra maneira. E a minha única chance. - Deem-me todos - disse - e podem ficar com um dragão. Ouviu-se o som do prender da respiração de Jhiqui ao seu lado. Kraznys sorriu para seus companheiros. - Não disse? Ela vai nos dar qualquer coisa. Barba-Branca fitou-a, numa incredulidade chocada. Sua mão tremia agarrada ao bastão. - Não. - Ajoelhou perante ela. - Vossa Graça, suplico-lhe, conquiste seu trono com dragões, não com escravos. Não pode fazer isso... - Você é que não pode se atrever a me dar instruções. Sor Jorah, tire Barba-Branca de minha presença. Mormont agarrou rudemente o velho por um cotovelo, colocou-o em pé com um puxão e levou-o para o terraço. - Diga aos Bons Mestres que lamento essa interrupção - disse Dany à jovem escrava. - Diga-lhes que aguardo sua resposta. Mas sabia qual seria a resposta; podia vê-la na cinttlação dos olhos deles e nos sorrisos que grandemente se esforçavam para esconder. Astapor tinha milhares de eunucos, e ainda mais garotos escravos à espera de serem cortados, mas só havia três dragões vivos em todo o grande mundo. E os ghiscari anseiam por dragões. Como podiam não ansiar? Cinco vezes a Velha Ghis havia competido com Valíria quando o mundo era jovem, e cinco vezes havia caído, em derrota desoladora. Pois a Cidade Franca possuía dragões e o Império, não. O mais velho dos Grazdan agitou-se no assento, e suas pérolas chocalharam baixinho, - Um dragão à nossa escolha - disse, numa voz fina e dura, - O negro é maior e mais saudável, - O nome dele é Drogon. - Ela assentiu. - Todos os seus bens, exceto sua coroa e vestuário real, que lhe permitiremos manter. Os três navios. E Drogon. - Feito - disse ela, no Idioma Comum. - Feito - respondeu o velho Grazdan no seu denso valiriano. Os outros serviram de ecos ao velho do debrum de pérolas. - Feito - traduziu a jovem escrava - e feito, e feito, oito vezes feito. - Os Imaculados aprenderão seu idioma selvagem bastante depressa - acrescentou Kraznys mo Nakloz, depois de tudo combinado -, mas até esse momento irá necessitar de um escravo para falar com eles. Aceite esta como presente, um penhor de um bom negócio.
- Aceitarei - disse Dany. A jovem escrava transmitiu-lhe as palavras dele e a ele as de Dany. Se tinha alguma emoção sobre ser oferecida como penhor, teve o cuidado de não deixar transparecer, Arstan Barba-Branca também domou a língua quando Dany passou por ele no terraço. Seguiu-a pela escadaria em silêncio, mas ela ouvia seu bastão de madeira rígida fazendo tap-tap nos tijolos vermelhos enquanto caminhavam. Não o censurava por sua fúria. O que fizera foi deplorável. A Mãe de Dragões vendeu o seu filho mais forte. Até a idéia a deixava nauseada. Mas lá embaixo, na Praça do Orgulho, em pé sobre os quentes tijolos vermelhos entre a pirâmide dos negociantes de escravos e as casernas dos eunucos, Dany virou-se para o velho. - Barba-Branca - disse -, quero seus conselhos, e nunca deve sentir medo de me dizer o que pensa... quando estivermos sozinhos. Mas nunca me questione na frente de estranhos. Entendido? - Sim, Vossa Graça - disse ele, em tom infeliz. - Não sou uma criança - disse-lhe ela. - Sou uma rainha, - Mas até as rainhas podem errar. Os astapori enganaram-na, Vossa Graça. Um dragão vale mais do que qualquer exército. Aegon provou-o há trezentos anos, no Campo de Fogo. - Eu sei o que Aegon provou. Pretendo também provar umas coisinhas. - Dany virou-se para a jovem escrava que estava obedientemente em pé ao lado de sua liteira. - Você tem nome, ou precisa tirar um novo todos os dias de dentro de um barril? - Isso é só para os Imaculados - disse a moça. Então percebeu que a pergunta havia sido feita em Alto Valiriano, Seus olhos esbugalharam-se. - Oh. - Seu nome é Oh? - Não. Vossa Graça, perdoe esta pelo descontrole. O nome de sua escrava é Missan- dei, mas... - Missandei já não é uma escrava. Liberto-a, a partir deste instante. Junte-se a mim na liteira, quero conversar. - Rakharo ajudou-a a entrar, e Dany fechou as cortinas à poeira e ao calor. - Se ficar comigo, vai me servir como uma de minhas aias - disse, quando se puseram em movimento. - Manterei você ao meu lado para falar por mim como falou por Kraznys. Mas pode deixar o meu serviço na hora que desejar, se tiver um pai ou uma mãe para junto de quem prefira voltar, - Esta ficará - disse a garota, - Esta... eu... não tenho para onde ir. Esta... eu vou servi-la, e de bom grado. - Posso dar-lhe liberdade, mas não posso lhe dar segurança - preveniu Dany. - Tenho um mundo para atravessar e guerras para travar. Pode vir a passar fome. Pode adoecer. Pode ser morta.
- Vaiar morghulis - disse Missandei, em Alto Valiriano. - Todos os homens têm de morrer - concordou Dany mas podemos rezar para que isso demore muito tempo para acontecer. - Encostou-se nas almofadas e tomou a mão da garota nas suas. - Estes Imaculados são realmente destemidos? - Sim, Vossa Graça. - Agora está a meu serviço. E verdade que não sentem dor? - O vinho da coragem mata essas sensações. Quando matam os bebês, já o bebem há anos. - E são obedientes? - Tudo que conhecem é a obediência. Se lhes disser para não respirarem, acharão isso mais fácil do que não obedecer. Dany fez um gesto afirmativo com a cabeça. - E quando não precisar mais deles? - Vossa Graça? - Quando tiver ganhado a minha guerra e reclamado o trono que era de meu pai, meus cavaleiros embainharão as espadas e voltarão para suas fortalezas, para suas esposas, filhos e mães... para suas vidas. Mas esses eunucos não têm vida. O que farei com oito mil eunucos depois de deixar de haver batalhas a travar? - Os Imaculados dão bons guardas e excelentes vigias, Vossa Graça - disse Missandei. - E nunca é difícil encontrar um comprador para tropas tão boas e experientes. - Os homens não são comprados e vendidos em Westeros, segundo me dizem. - Com todo o respeito, Vossa Graça, os Imaculados não são homens. - Se os revendesse, como saberia que não seriam usados contra mim? - perguntou Dany sem rodeios. - Fariam isso? Lutariam contra mim, chegariam a me machucar fisicamente? - Se o seu dono o ordenasse. Eles não questionam, Vossa Graça. Todas as questões lhes foram arrancadas. Eles obedecem. - Parecia perturbada, - Quando não... quando não precisar mais deles... Vossa Graça pode ordenar-lhes que caiam sobre as espadas. - E até isso fariam? - Sim - A voz de Missandei suavizara-se. - Vossa Graça. Dany apertou sua mão. - Mas preferiria que eu não lhes pedisse isso. Por quê? Por que se preocupa? - Esta não... eu... Vossa Graça... - Diga-me. A garota baixou os olhos, - Três deles foram antigamente meus irmãos, Vossa Graça.
Então espero que seus irmãos sejam tão corajosos e inteligentes quanto você. Dany voltou a encostar-se na almofada, e deixou que a liteira a levasse em frente, uma última vez de volta ao Balerion, para colocar o seu mundo em ordem. E de volta a Drogon. Sua boca apertou-se numa expressão carrancuda. A noite que se seguiu foi longa, escura e ventosa. Dany alimentou os dragões como sempre fazia, mas descobriu que ela mesma não tinha apetite. Chorou um pouco, sozinha, em sua cabine, e depois secou as lágrimas durante tempo bastante para mais uma discussão com Groleo. - O Magíster Illyrio não está aqui - teve finalmente de lhe dizer e se estivesse, também não conseguiria me dissuadir. Preciso mais dos Imaculados do que destes navios, e não quero ouvir nem mais uma palavra. A ira consumiu-lhe o desgosto e o medo, pelo menos durante algumas horas. Mais tarde chamou os companheiros de sangue à sua cabine, com Sor Jorah. Eram os únicos em quem realmente confiava. Pretendia dormir depois, para estar bem repousada de manhã, mas uma hora de agitação insone no confinamento abafado da cabine rapidamente a convenceu de que não devia continuar tentando. A porta, encontrou Aggo colocando uma nova corda no arco à luz de uma oscilante candeia de azeite. Rakharo estava sentado no chão, ao seu lado, de pernas cruzadas, afiando o arakb com uma pedra de amolar. Dany disse a ambos para continuarem o que estavam fazendo, e subiu ao convés para tomar um pouco do ar fresco da noite. A tripulação deixou-a em paz enquanto tratava de seus assuntos, mas Sor Jorah rapidamente veio lhe fazer companhia junto à amurada. Ele nunca está longe, pensou Dany. Conhece meus estados de espírito bem demais. - Khaleesi. Devia estar dormindo. Amanhã estará quente e será duro, garanto-lhe. Precisará de suas forças. - Lembra-se de Eroeh? - perguntou-lhe ela. - A garota lhazarena? - Estavam violando a garota, mas eu impedi-os e coloquei-a sob a minha proteção. Só que quando o meu sol e estrelas morreu, Mago tomou-a de volta, voltou a usá-la e matou-a. Aggo disse que era o seu destino. - Lembro-me disso - disse Sor Jorah. - Estive só durante muito tempo, Jorah. Completamente só, tirando o meu irmão. Era uma coisinha tão pequena e assustada. Viserys deveria ter me protegido, mas em vez disso machucava-me e assustava-me mais ainda. Ele não devia ter feito isso. Não era só meu irmão, era meu rei. Por que os deuses criam os reis e as rainhas, se não for para pro- teger aqueles que não conseguem fazer isso por conta própria? - Alguns reis criam-se a si mesmos. Foi o que Robert fez.
- Ele não era um verdadeiro rei - disse Dany com desdém. - Não oferecia justiça. Justiça... é para isso que os reis servem. Sor Jorah não encontrou resposta. Limitou-se a sorrir, e tocou seus cabelos, muito de leve. Foi o bastante. Naquela noite sonhou que era Rhaegar, a caminho do Tridente. Mas ia montada num dragão, e não num cavalo. Quando viu a tropa rebelde do Usurpador do outro lado do rio, eles tinham armaduras de gelo, mas ela banhou-os em fogo de dragão e eles derreteram- -se como orvalho e transformaram o Tridente numa torrente. Uma pequena parte de si sabia que estava sonhando, mas outra parte exultou. Era assim que estava destinado a ser. A outra maneira foi um pesadelo, e só agora acordei. Acordou subitamente na escuridão de sua cabine, ainda transbordante de triunfo, O Balerion pareceu acordar com ela, e ouviu o tênue ranger de madeira, água batendo de encontro ao casco, um passo no convés por cima de sua cabeça. H algo mais. Alguém estava com ela na cabine. - Irri? Jhiqui? Onde estão? - as aias não responderam. Estava escuro demais para ver, mas ouvia-as respirar. - Jorah, é você? - Eles dormem - disse uma mulher. - Todos eles dormem. - A voz estava muito próxima. - Até os dragões têm de dormir. Ela está em cima de mim. - Quem está aí? - Dany tentou ver na escuridão. Julgou detectar uma sombra, o mais tênue contorno de uma silhueta. - O que quer de mim? - Lembre-se. Para ir para o norte, deve viajar para o sul. Para alcançar o oeste, tem de ir para leste. Para ir em frente, deve voltar para trás, e para tocar a luz, tem de passar sob a sombra. - Quaithe? - Dany saltou da cama e escancarou a porta. A pálida luz amarela das lanternas inundou a cabine, e Irri e Jhiqui sentaram-se, sonolentas. - Kkaleesi? - murmurou Jhiqui, esfregando os olhos. Viserion acordou e abriu as mandíbulas, e uma baforada de chamas iluminou até os cantos mais escuros. Não havia sinais de uma mulher com uma máscara de laca vermelha. - Khaleesi, não está bem? - perguntou Jhiqui, - Um sonho. - Dany sacudiu a cabeça. - Tive um sonho, foi só isso. Voltem a dormir. Vamos todas voltar a dormir. - Mas, por mais que tentasse, o sono não queria voltar. Se olhar para trás, estou perdida, disse Dany a si mesma na manhã seguinte, ao entrar em Astapor pelos portões do porto, Não se atrevia a lembrar a si mesma como, na realidade, era pequena e insignificante a sua comitiva, caso contrário perderia toda a coragem. Naquele dia montava a sua prata, vestida com calças de pelo de cavalo e um colete de couro pintado, com um cinto de medalhões de bronze na cintura e
mais dois cruzados entre os seios. Irri e Jhiqui tinham trançado seus cabelos e prendido neles uma minúscula sineta de prata, cujo tilintar cantava uma canção sobre os Imorredouros de Qarth, queimados em seu Palácio de Poeira. As ruas de tijolo vermelho de Astapor estavam quase repletas nessa manhã. Escravos e criados aglomeravam-se junto às paredes, enquanto os senhores de escravos e suas mulheres tinham vestido seus tokars para observar do alto das pirâmides de degraus. No fim das contas, não são assim tão diferentes dos qartenos, pensou Dany. Querem um vislum- bre de dragões que possam contar aos filhos e aos filhos dos filhos. Aquele pensamento fez Dany indagar-se sobre quantos deles chegariam a ter filhos. Aggo seguia na sua frente, com seu grande arco dothraki. Belwas, o Forte, caminhava à direita de sua égua, e a pequena Missandei à esquerda. Sor Jorah Mormont vinha atrás, de cota de malha e sobretudo, lançando olhares carrancudos a todos os que se aproxi- massem em excesso. Rakharo e Jhogo protegiam a liteira. Dany ordenara que o topo fosse removido, para que os três dragões pudessem ser acorrentados à plataforma. Irri e Jhiqui seguiam com eles, para tentar mantê-los calmos. Mas Viserion brandia a cauda para um lado e para o outro, e uma fumaça subia, irritada, de suas narinas, Rhaegal também sentia que algo não estava bem. Por três vezes tentou levantar voo, só conseguindo ser puxado para baixo pela pesada corrente que Jhiqui tinha na mão. Drogon enrolara-se numa bola, com as asas e a cauda bem aconchegadas. Só os seus olhos indicavam que não estava dormindo. O resto do seu povo seguia-os: Groleo e os outros capitães e suas tripulações, e os oitenta e três dothraki que restavam dos cem mil que um dia tinham acompanhado o khalasar de Drogo. Dany tinha colocado os mais velhos e mais fracos no centro da coluna, com as lactantes, as grávidas, as meninas pequenas e os garotos novos demais para trançar o cabelo. Os outros - aquilo que possuía de guerreiros - seguiam no exterior e faziam avançar a sua triste manada, os cento e tantos cavalos descarnados que tinham sobrevivido seja ao deserto vermelho, seja ao negro mar salgado. Devia mandar bordar um estandarte, pensou enquanto avançava à frente de seu bando andrajoso ao longo dos meandros do rio de Astapor. Fechou os olhos para imaginar seu aspecto: todo de seda negra e leve, e nele o dragão vermelho de três cabeças de Targaryen, exalando chamas douradas. Um estandarte que Rhaegar pudesse ter usado. As margens do rio eram estranhamente tranqüilas. Os astapori chamavam-no de Verme. Era largo, lento e cheio de curvas, semeado de minúsculas ilhas cobertas de florestas. Vislumbrou crianças que
brincavam numa delas, correndo por entre elegantes estátuas de mármore. Em outra ilha, um casal de amantes beijava-se à sombra de altas árvores verdes, tão desprovidos de vergonha como um dothraki num casamento. Sem roupas, não sabia dizer se eram escravos ou livres. A Praça do Orgulho, com sua grande harpia de bronze, era pequena demais para conter todos os Imaculados que tinha comprado. Em vez de estarem ali, os escravos tinham sido reunidos na Praça da Punição, em frente ao portão principal de Astapor, para poderem ser levados diretamente da cidade assim que Dany estivesse na posse deles. Ali não havia estátuas de bronze; só uma plataforma de madeira onde escravos rebeldes eram torturados, esfolados e enforcados. - Os Bons Mestres colocam-nos assim para que sejam a primeira coisa que um novo escravo vê quando entra na cidade - disse-lhe Missandei quando entraram na praça. A primeira vista, Dany pensou que os castigados tinham pele listrada, como os ze- bralos dos Jogos Nhai. Então aproximou-se na sua prata e viu a carne viva sob as listras negras em movimento. Moscas. Moscas e larvas. Tinham arrancado a pele dos escravos rebeldes como se descasca uma maçã, numa longa fita enrolada, Um dos homens tinha um braço negro de moscas dos dedos ao cotovelo, e vermelho e branco por baixo. Dany freou o cavalo por baixo dele. - O que este fez? - Levantou uma mão contra o dono. Com o estômago embrulhado, Dany virou sua prata e trotou na direção do centro da praça, e do exército que comprara a um preço tão elevado, Estavam em pé, fileira atrás de fileira, atrás de fileira, seus meios-homens de pedra com coração de tijolo; oito mil e seiscentos com os capacetes de espigão em bronze de Imaculados plenamente treinados, e cerca de cinco mil atrás deles, de cabeça descoberta, mas armados com lanças e espadas curtas. Viu que aqueles que se encontravam mais para trás não passavam de meninos, mas estavam tão rígidos e imóveis quanto os outros. Kraznys mo Nakloz encontrava-se ali com todos os seus companheiros para saudá-la. Outros astapori de elevado nascimento juntavam-se em grupos atrás deles, bebericando vinho de taças altas de prata, enquanto escravos circulavam entre eles com bandejas cheias de azeitonas, cerejas e figos. O Grazdan mais velho ocupava uma liteira, sustentada por quatro enormes escravos com peles acobreadas. Meia dúzia de lanceiros a cavalo percorria os limites da praça, mantendo afastadas as multidões que tinham vindo assistir. O sol reíulgia nos discos de cobre polido costurados aos seus mantos com um brilho que cegava, mas
Dany não pôde deixar de reparar como seus cavalos pareciam nervosos. Temem os dragões. E não é de admirar que os temam. Kraznys ordenou a um escravo que a ajudasse a descer da sela. Ele tinha as mãos ocupadas; uma agarrava o tokar, enquanto a outra empunhava um ornamentado chicote. - Aqui estão eles. - Olhou para Missandei. - Diga-lhe que são seus... se puder pagar. - Pode - disse a garota. Sor Jorah ladrou uma ordem, e a mercadoria foi trazida. Seis fardos de pele de tigre, trezentos rolos de boa seda. Potes de açafrão, potes de mirra, potes de pimenta, curry e cardamomo, uma máscara de ônix, doze macacos de jade, barris de tinta vermelha, preta e verde, uma caixa de raras ametistas negras, uma caixa de pérolas, um barril de azeitonas sem caroço recheadas com lagartas, uma dúzia de barris de bagres cegos em salmoura, um grande gongo de latão e um martelo para bater nele, dezessete olhos de marfim, e uma enorme arca cheia de livros escritos em línguas que Dany não sabia ler. E mais, e mais, e mais. Seu povo empilhou tudo diante dos negociantes de escravos. Enquanto o pagamento era feito, Kraznys mo Nakloz concedeu-lhe algumas palavras finais sobre o modo de lidar com as tropas. - Eles ainda estão verdes - disse ele através de Missandei. - Diga à prostituta de Westeros que faria bem em dar-lhes rapidamente o batismo de sangue. Há muitas cidades pequenas no caminho, cidades prontas para serem pilhadas. Qualquer saque que obtenha será apenas seu. Os Imaculados não cobiçam o ouro ou as pedras preciosas. E se capturar prisioneiros, alguns guardas serão suficientes para trazê-los para Astapor. Compraremos os saudáveis, e por um bom preço. E quem sabe? Daqui a dez anos, alguns dos garotos que nos mandar poderão ser por sua vez Imaculados. Assim todos prosperaremos. Por fim, já não havia mais mercadoria a adicionar à pilha. Seus dothraki voltaram a subir para os cavalos, e Dany disse: - Isto foi tudo o que pudemos transportar. O resto aguarda nos navios, uma grande quantidade de âmbar, vinho e arroz negro. E vocês têm os próprios navios. Então tudo que nos resta é... - ... o dragão - terminou o Grazdan com a barba pontiaguda, que falava o Idioma Comum com forte sotaque. - E aqui está ele. - Sor Jorah e Belwas dirigiram-se ao seu lado para a liteira, onde Drogon e os seus irmãos tostavam ao sol. Jhiqui desprendeu uma ponta da corrente e entregou-a a ela, Quando lhe deu um puxão, o dragão negro ergueu a cabeça, silvando, e abriu asas de noite e escarlate. Kraznys mo Nakloz deu um largo sorriso quando a sombra das asas caiu sobre si.
Dany entregou ao comerciante de escravos a ponta da corrente de Drogon. Em troca, ele presenteou-a com o chicote. O cabo era de osso negro de dragão, elaboradamente esculpido e incrustado de ouro. Nove longas e finas tiras de couro saíam desse cabo, todas rematadas por uma garra dourada. O botão de ouro era uma cabeça de mulher, com dentes pontiagudos de marfim. - Os dedos da harpia - chamou Kraznys ao açoite. Dany revirou o chicote na mão. Uma coisa tão leve, com um peso tão grande. - Então está feito? Eles pertencem a mim? - Está feito - concordou o homem, dando um forte puxão na corrente para que Drogon descesse da liteira. Dany montou sua prata. Sentia o coração tamborilando no peito. Sentia um medo desesperado. Seria isso o que o meu irmão teria jeito? Perguntou a si mesma se o Príncipe Rhaegar se sentira tão ansioso assim quando viu a tropa do Usurpador em formação do outro lado do Tridente, com todos os seus estandartes flutuando ao vento. Pôs-se em pé nos estrihos e ergueu os dedos da harpia sobre a cabeça, para que todos os Imaculados os vissem, - ESTÁ FEITO! - gritou, o mais alto que foi capaz. - VOCÊS SÂO MEUS/ - Es- poreou a égua e galopou ao longo da primeira fileira, mantendo os dedos erguidos. - PERTENCEM AGORA AO DRAGAO! FORAM COMPRADOS E PAGOS! ESTÁ FEITO! ESTÁ FEITO! Vislumbrou o velho Grazdan virando rapidamente a cabeça grisalha. Ele me ouviu falar valiriano. Os outros negociantes de escravos não estavam atentos. Aglomeravam-se em volta de Kraznys e do dragão, gritando conselhos. Embora os astapori puxassem e empurrassem, Drogon não saía da liteira. Fumaça cinza subia de suas mandíbulas aber- tas, e seu longo pescoço enrolava-se e endireitava-se enquanto ele tentava morder o rosto do feitor. É hora de atravessar o Tridente, pensou Dany, ao virar-se e trazer a prata de volta. Seus companheiros de sangue aproximaram-se e cercaram-na. - Está em dificuldades - observou Dany. - Ele não quer vir - disse Kraznys. - Há uma razão, Um dragão não é escravo de ninguém. - E Dany chicoteou com toda a força o rosto do negociante de escravos. Kraznys gritou e cambaleou para trás, com sangue escorrendo, vermelho, para sua barba perfumada. Os dedos da harpia tinham quase desfeito suas feições de um golpe, mas Dany não parou para contemplar o estrago. - Drogon - cantou em voz alta, em tom doce, todo o seu medo esquecido. - Dracarys. O dragão negro abriu as asas e rugiu.
Uma lança de turbilhonantes chamas escuras atingiu em cheio o rosto de Kraznys. Seus olhos derreteram e escorreram pelas maçãs de seu rosto, e o óleo que tinha nos cabelos e barba incendiou-se com tanta violência que, por um instante, o senhor de escravos usou uma coroa flamejante duas vezes mais alta do que sua cabeça. O súbito fedor de carne carbonizada conseguiu sobrepor-se até mesmo ao seu perfume, e seu grito de dor pareceu afogar todos os outros sons. Então a Praça da Punição estourou em sangue e caos. Os Bons Mestres guinchavam, esbarravam e empurravam-se uns aos outros, tropeçavam, com a pressa, no debrum de seus tokars. Drogon voou quase preguiçosamente contra Kraznys, batendo asas negras. Enquanto oferecia ao senhor de escravos mais um pouco de fogo, Irri e Jhiqui desacor- rentaram Viserion e Rhaegal, e de repente havia três dragões no ar. Quando Dany se virou para olhar, um terço dos orgulhosos guerreiros de chifres demoníacos de Astapor lutava para se manter montado em suas aterrorizadas montarias, e outro terço fugia num brilhante clarão de cobre brilhante. Um homem manteve-se sobre a sela tempo suficiente para puxar uma espada, mas o chicote de Jhogo enrolou-se em torno do pescoço dele e cortou seu grito. Outro perdeu uma mão para o arakh de Rakharo e afastou- -se, cambaleando e jorrando sangue. Aggo sentou-se calmamente, encaixando flechas na corda de seu arco e disparando-as contra tokars. Não importava nem um pouco que o debrum fosse de prata, ouro ou simples. Belwas, o Forte, também tinha o seu arakh de- sembainhado, e fazia-o rodopiar enquanto atacava. Dany ouviu um astapori gritar: - Lanças! - era Grazdan, o velho Grazdan com seu tokar carregado de pérolas. - Imaculados! Defendam-nos, parem-nos, defendam os seus senhores! Lanças! Espadas! Quando Rakharo enfiou uma flecha na boca dele, os escravos que sustentavam a sua liteira separaram-se e fugiram, deixando-o cair sem cerimônia no chão. O velho engatinhou até a primeira fileira de eunucos, deixando poças de sangue nos tijolos. Os Imaculados sequer olharam para baixo, para vê-lo morrer. Fileira atrás de fileira, atrás de fileira, permaneceram em pé. E não se moveram. Os deuses ouviram a minha prece. - Imaculados! - Dany galopou à frente deles, com a trança de um louro prateado es- voaçando atrás, e a sineta tilintando a cada passo. - Matem os Bons Mestres, matem os soldados, matem todos os homens que usem um tokar ou tenham um chicote nas mãos, mas não façam mal a nenhuma criança com menos de doze anos, e arranquem as correntes de todos os escravos que virem. - Ergueu os dedos da harpia... e então atirou o açoite para longe. - Liberdade! - entoou. - Dracarys! Dracarys!
- Dracarys! - gritaram eles em resposta, a mais bela palavra que já ouvira. - Dracarys! Dracarys! - E por toda a sua volta, feitores fugiam, soluçavam, suplicavam e morriam, e o ar poeirento encheu-se de lanças e fogo.  

Jon

A última noite caiu, negra e sem lua, mas pela primeira vez o céu estava limpo. - Vou subir o monte para procurar o Fantasma - disse aos Thenns na entrada da caverna, e eles soltaram um grunhido e deixaram-no passar. Tantas estrelas, pensou, enquanto subia penosamente a encosta por entre pinheiros, abetos e freixos. O Meistre Luwin ensinara-lhe as estrelas, na infância passada em Winterfell; havia aprendido o nome das doze casas do céu e o dos regentes de cada uma; conseguia encontrar os sete viajantes sagrados para a Fé; era velho amigo do Dragão de Gelo, do Gato das Sombras, da Donzela da Lua e da Espada da Manhã. Dividia todos estes com Ygritte, mas não alguns dos outros. Erguemos os olhos para as mesmas estrelas, e vemos coisas tão diferentes. Segundo ela, a Coroa do Rei era o Berço; o Garanhão era o Senhor Chifrudo; o viajante vermelho, que segundo as orações dos septões era sagrado para o seu Ferreiro, ali em cima era chamado de Ladrão. E quando o Ladrão se encontrava na Donzela da Lua, insistia Ygritte, isso queria dizer que a época era propícia para que um homem raptasse uma mulher. - Como na noite em que me raptou. O Ladrão estava brilhante naquela noite. - Não pretendia raptá-la - disse ele. - Nem sabia que era uma mulher até encostar a faca na sua garganta. - Se matar um homem sem querer, ele vai estar morto do mesmo jeito - disse Ygritte teimosamente. Jon nunca havia conhecido pessoa mais teimosa, exceto talvez sua irmã mais nova, Arya. Será que ela ainda é minha irmã?, perguntou a si próprio. Alguma vez terá sido? Ele nunca realmente fora um Stark, apenas o bastardo sem mãe de Lorde Eddard, que não tinha mais lugar em Winterfell do que Theon Greyjoy. E mesmo isso perdera. Quando um homem da Patrulha da Noite proferia suas palavras, punha de lado sua antiga família e juntava-se a uma nova, mas Jon Snow tinha perdido também esses irmãos. Encontrou Fantasma no topo do monte, como imaginara. O lobo branco nunca uivava, e no entanto algo o atraía às alturas mesmo assim, e ficava ali sentado, com o hálito quente levantando-se numa névoa branca enquanto seus olhos vermelhos bebiam as estrelas.
- Você também tem nomes para elas? - perguntou Jon quando se ajoelhou ao lado do lobo gigante e coçou os espessos pelos brancos do pescoço do animal, - A Lebre? A Corça? A Loba? - Com sua língua úmida e áspera, Fantasma lambeu o rosto de Jon, raspando as crostas onde as garras da águia tinham rasgado sua face. A ave marcou-nos a ambos, Jon pensou. - Fantasma - disse, em voz baixa -, amanhã de manhã passamos sobre a Muralha. Aqui não há degraus, não há gaiola e grua, não há como levá-lo para o outro lado. Temos de nos separar. Compreende? Na escuridão, os olhos vermelhos do lobo gigante pareciam negros. Encostou o foci- nho no pescoço de Jon, silencioso como sempre, com o hálito numa névoa quente. Os selvagens chamavam Jon Snow de warg, mas se o era, era dos ruins. Não sabia como vestir uma pele de lobo, como Orell vestia a de sua águia antes de morrer. Um dia Jon sonhara que era Fantasma, e olhava o vale do Guadeleite onde Mance Rayder reunira seu povo, e esse sonho revelou-se verdadeiro. Mas agora não estava sonhando, e isso deixava-lhe apenas as palavras. - Não pode vir comigo - disse Jon, envolvendo a cabeça do lobo nas mãos e olhando- -o profundamente nos olhos. - Tem de ir para Castelo Negro. Compreende? Castelo Ne- gro. Consegue encontrá-lo? O caminho para casa? E só seguir o gelo, para leste e mais para leste, para o sol, e vai encontrá-lo. Em Castelo Negro vão reconhecê-lo, e sua chegada talvez os previna. - Pensara em escrever um aviso para Fantasma levar, mas não tinha tinta nem pergaminho, nem sequer uma pena, e o risco de ser descoberto era grande demais. - Encontramo-nos em Castelo Negro, mas tem de chegar lá sozinho. Temos de caçar sozinhos durante algum tempo. Sozinhos. O lobo gigante libertou-se de Jon com uma torção do corpo, suas orelhas ergueram- -se. E de repente afastou-se aos saltos. Pulou através de um emaranhado de mato, saltou sobre uma árvore caída e correu pela vertente do monte, um traço branco entre as árvores. Para Castelo Negro?, perguntou Jon a si mesmo. Ou atrás de uma lebre? Gostaria de saber. Temia revelar-se tão ruim como warg quanto como irmão juramentado e espião. Um vento suspirou por entre as árvores, rico com o cheiro de agulhas de pinheiro, puxando sua roupa negra desbotada. Jon via a Muralha erguer-se alta e escura ao sul, uma grande sombra que bloqueava as estrelas. O terreno montanhoso dava-lhe a idéia de que deviam estar em algum lugar entre Torre Sombria e Castelo Negro, provavelmente mais perto da Torre. Havia dias em que se dirigiam para o sul, por entre lagos profundos que se estendiam como dedos finos compridos ao longo de vales estreitos, enquanto cumeadas de sílex e montes vestidos de pinheiros se empurravam uns contra os outros de ambos os lados. Um
terreno assim levava a um avanço lento, mas escondia facilmente aqueles que queriam se aproximar da Muralha sem serem vistos. Corsários selvagens, pensou. Como nós. Como eu. Para lá daquela Muralha ficavam os Sete Reinos, e tudo aquilo que jurara proteger. Tinha proferido as palavras, empenhado sua vida e sua honra, e o correto seria estar lá em cima, de sentinela. Devia estar levando um berrante aos lábios para chamar a Patrulha da Noite às armas. Mas não tinha berrante. Suspeitava que não seria difícil roubar um dos selvagens, mas o que conseguiria com isso? Mesmo se o soprasse, não haveria ninguém para ouvir, A Muralha tinha cem léguas de comprimento, e a Patrulha estava tristemente reduzida. Todos os fortes, exceto três, tinham sido abandonados; podia não haver nem um irmão num raio de cerca de sessenta e cinco quilômetros, além de si. Se é que ele ainda era um irmão... Devia ter tentado matar Mance Rayder no Punho, mesmo se isso significasse perder a vida. Isso seria o que Qhorin Meia-Mão teria feito. Mas Jon hesitara, e a oportunidade tinha passado. No dia seguinte partiu para o sul com Styr, o Magnar, Jarl e mais de uma centena de Thenns e batedores escolhidos. Dizia a si mesmo que estava apenas à espera de sua hora, que, quando o momento chegasse, escaparia e se dirigiria a Castelo Negro. O momento nunca chegou. Descansavam a maior parte das noites em aldeias selvagens abandonadas, e Styr punha sempre uma dúzia dos seus Thenns para guardar os cavalos. Jarl vigiava-o desconfiadamente. E Ygritte nunca estava longe, de dia ou de noite. Dois corações que batem como um só. As palavras zombeteiras de Mance Rayder ressoavam, amargas, em sua cabeça. Jon poucas vezes se sentira tão confuso. Não tenho alternativa, disse a si mesmo da primeira vez, quando ela deslizou para baixo de suas peles de dormir. Se recusá-la, ela compreenderá que sou um vira-casaca. Estou desempenhando o papel que o Meia-Mão me disse para desempenhar. Seu corpo desempenhou o papel com bastante avidez. Seus lábios nos dela, sua mão deslizando por baixo da camisa de pele de veado de Ygritte em busca de um seio, seu membro viril enrijecendo quando ela esfregou nele o seu monte através da roupa. Os meus votos, pensou, recordando o grupo de represeiros onde os proferiu, as nove grandes árvores brancas dispostas em círculo, os rostos vermelhos esculpidos observando, escutando. Mas os dedos de Ygritte desatavam seus cordões, e a língua dela estava na sua boca, e a mão dela tinha deslizado para dentro de sua roupa de baixo e trazido-o para fora, e ele já não conseguia ver os represeiros, só Ygritte. Ela mordeu seu pescoço, e ele esfregou o nariz no dela, enterrando-o em seus espessos cabelos ruivos. Sortuda, pensou, ela é sortuda, beijada pelo fogo.
- Não é bom? - sussurrou Ygritte enquanto o guiava para dentro de si. Estava ensopada, lá embaixo, e não era nenhuma donzela, isso era evidente, mas Jon não se importou. Os votos dele, a virgindade dela, nada importava, só interessava o seu calor, a sua boca na dele, o dedo que lhe beliscava o mamilo. - Não é muito bom? - voltou a dizer. - Não tão depressa, oh, devagar, sim, assim. Aí, aí, sim, bom, bom. Não sabe nada, Jon Snow, mas eu posso ensinar. Agora mais depressa. Siiiiim. Um papel, Jon tentou lembrar a si mesmo mais tarde. Estou desempenhando um papel Tinha de fazer isso uma vez, para provar que abandonei meus votos. Tive de Jazer com que ela confiasse em mim. Não precisava acontecer novamente, Ainda era um homem da Patrulha da Noite, e um filho de Eddard Stark, Fizera o que tinha de ser feito, demonstrara o que tinha de ser demonstrado. Mas a demonstração tinha sido muito agradável, e Ygritte havia adormecido ao seu lado, com a cabeça apoiada em seu peito, e isso também tinha sido agradável, perigosamente agradável. Voltou a pensar nos represeiros, e nas palavras que disse diante deles. .Foí só uma vez, e teve de ser. Até meu pai tropeçou uma vez, quando se esqueceu dos votos de casamento e gerou um bastardo. Jon jurou a si mesmo que não repetiria o mesmo erro. Não voltará a acontecer. Aconteceu mais duas vezes naquela mesma noite, e de novo de manhã, quando ela acordou e o encontrou duro. Os selvagens já se agitavam a essa altura, e vários não puderam evitar reparar no que estava se passando sob a pilha de peles, Jarl disse-lhes que se apressassem antes de ter de despejar um balde de água em cima deles. Como um par de cães no cio, pensou Jon mais tarde. Será que ele teria se transformado nisso? Som um homem da Patrulha da Noite, insistia uma vozinha dentro de si, mas todas as noites ela parecia um pouco mais distante, e quando Ygritte beijava suas orelhas ou mordia seu pescoço, não conseguia ouvi-la muito bem. Terá sido isso que aconteceu com meu pai?, perguntava Jon a si mesmo. Seria ele tão fraco quanto eu, quando se desonrou na cama de minha mãe? Percebeu subitamente que algo subia o monte atrás dele. Durante meio segundo pensou que poderia ser o Fantasma de volta, mas o lobo gigante nunca fazia tanto barulho, Jon desembainhou a Garralonga num único movimento fluido, mas era apenas um dos Thenns, um homem largo com um elmo de bronze. - Snow - disse o intruso. - Venha. Magnar quer. - Os homens de Thenn falavam o Idioma Antigo, e a maior parte não sabia mais do que algumas palavras do Idioma Comum. Jon não estava muito interessado em saber o que Magnar queria, mas não valia a pena discutir com alguém que quase não o compreenderia, por isso seguiu o homem monte abaixo,
A abertura da caverna era uma fenda na rocha que quase não era larga o suficiente para um cavalo, meio escondida por baixo de um pinheiro marcial. Abria para o norte, de modo que o brilho das fogueiras acesas lá dentro não seriam visíveis da Muralha. Mesmo se, por algum infortúnio, uma patrulha passasse no topo da Muralha naquela noite, nada veria além de montes, pinheiros e a cintilação gelada das estrelas num lago semicongela- do. Mance Rayder planejara bem a sua arremetida. Dentro da rocha, a passagem descia seis metros antes de desembocar num espaço tão grande quanto o Grande Salão de Winterfell. Ardiam fogueiras por entre as colunas, com a fumaça subindo, enegrecendo o teto de pedra. Os cavalos tinham sido presos ao longo de uma parede, junto a uma lagoa rasa. Um buraco no centro do chão abria-se para o que podia ser uma caverna ainda maior embaixo, embora a escuridão tornasse difícil ter certeza disso. Jon ouvia também o suave ruído de um riacho subterrâneo que corria em algum lugar lá embaixo. Jarl estava com Magnar; Mance entregara-lhes o comando conjunto. Jon notou rapidamente que Styr não estava nada satisfeito com isso. Mance Rayder chamou o escuro jovem de "animal de estimação" de Vai, que era irmã de Dalla, a sua rainha, o que fazia de Jarl uma espécie de cunhado do Rei-para-lá-da-Muralha. Era evidente que Magnar se ressentia de partilhar sua autoridade. Havia trazido uma centena de Thenns, cinco vezes mais homens do que Jarl, e muitas vezes agia como se ele tivesse o comando completo. Mas Jon sabia que seria o homem mais novo quem os levaria para o outro lado do gelo. Embora não pudesse ter mais do que vinte anos, Jarl já fazia incursões havia oito, e passara por cima da Muralha uma dúzia de vezes com gente como Alfyn Mata-Corvos e Chorão, e mais recentemente com seu próprio bando. Magnar foi direto. - Jarl preveniu-me a respeito de corvos patrulhando lá em cima. Diga-me tudo o que sabe dessas patrulhas. Diga-me, notou Jon, e não diga-nos, apesar de Jarl estar bem ao lado dele. Nada lhe daria mais prazer do que recusar a brusca exigência, mas sabia que Styr mandaria matá-lo pela mais ligeira deslealdade, e a Ygritte também, pelo crime de ser sua. - Há quatro homens em cada patrulha, dois patrulheiros e dois construtores - disse. - Os construtores devem tomar nota de fendas, derretimentos e outros problemas estruturais, enquanto os patrulheiros procuram sinais de inimigos. Montam mulas. - Mulas? - o homem sem orelhas franziu a testa. — As mulas são lentas. - São lentas, mas têm patas mais seguras no gelo. É freqüente que as patrulhas sigam pelo topo da Muralha, e, longe de Castelo Negro, os
caminhos lá em cima já não recebem cascalho há longos anos. As mulas são criadas em Atalaialeste e especialmente treinadas para o serviço. - É freqüente que sigam pelo topo da Muralha? Nem sempre seguem? - Não. Uma patrulha em cada quatro segue pela base, para procurar fendas no gelo das fundações ou sinais de abertura de túneis. Magnar assentiu com a cabeça. - Até na distante Thenn conhecemos a história de Arson Machado de Gelo e de seu túnel Jon também conhecia a história. Arson Machado de Gelo já tinha atravessado metade da Muralha quando seu túnel foi descoberto por patrulheiros vindos de Fortenoite. Não se incomodaram em perturbar suas escavações, limitaram-se a selar o caminho de volta com gelo, pedra e neve. Edd Doloroso costumava dizer que, caso se encostasse a orelha na Muralha, ainda se conseguia ouvir Arson dando machadadas no gelo. - Quando saem essas patrulhas? Com que freqüência? Jon encolheu os ombros. - Varia. Ouvi dizer que o Senhor Comandante Qorgyle costumava enviá-las de três em três dias de Castelo Negro para Atalaialeste do Mar, e de dois em dois dias de Castelo Negro para Torre Sombria. Mas a Patrulha tinha mais homens no tempo dele. O Senhor Comandante Mormont prefere variar o número de patrulhas e os dias de sua partida, para tornar mais difícil que alguém saiba de suas idas e vindas. E às vezes o Velho Urso até mandava uma força maior para um dos castelos abandonados durante uma quinzena ou uma volta de lua. - Jon sabia que fora o tio quem dera origem a essa tática. Tudo para deixar o inimigo incerto. - Portapedra está atualmente guarnecido? - perguntou Jarl. - Guardagris? Quer dizer então que estamos entre esses dois? Jon manteve o rosto cuidadosamente inexpressivo. - Só Atalaialeste, Castelo Negro e Torre Sombria tinham guarnições quando eu deixei a Muralha. Não sei dizer o que Bowen Marsh ou Sor Denys poderão ter feito desde então. - Quantos corvos permanecem dentro dos castelos? - perguntou Styr. - Quinhentos em Castelo Negro. Duzentos na Torre Sombria, talvez trezentos em Atalaialeste. - Jon havia acrescentado trezentos homens à contagem. Se pudesse ser assim tão fácil... Mas Jarl não se deixou enganar. - Ele está mentindo - disse a Styr. - Ou então incluiu aqueles que se perderam no Punho. - Corvo - avisou o Magnar -, não me tome por Mance Rayder. Se mentir para mim, corto sua língua.
- Não sou nenhum corvo, e ninguém me chama de mentiroso. - Jon flexionou os dedos de sua mão da espada. Magnar de Thenn estudou Jon com seus frios olhos cinzentos. - Vamos conhecer seus números em breve - disse após um momento. - Vá. Logo mando chamar você se tiver mais perguntas. Jon inclinou a cabeça rigidamente e partiu. Se todos os selvagens fossem como Styr, seria mais fácil trai-los. Mas os Thenn não eram como o resto do povo livre. Magnar afirmava ser o último dos Primeiros Homens, e governava com mão de ferro. A sua pequena terra de Thenn era um vale elevado de montanha escondido entre os picos setentrionais das Presas de Gelo, rodeado por homens das cavernas, homens de Cornopé, gigantes e os clãs canibais dos rios de gelo. Ygritte dizia que os Thenn eram guerreiros violentos, e que seu Magnar era para eles um deus. Jon conseguia acreditar nisso. Ao contrário de Jarl, Harma ou de Camisa de Chocalho, Styr exigia de seus homens obediência absoluta, e essa disciplina era sem dúvida parte do motivo por que Mance o escolhera para atravessar a Muralha. Passou pelos Thenns, sentados sobre seus elmos arredondados de bronze, em volta das fogueiras. Onde se meteu Ygritte? Encontrou as coisas dela junto das suas, mas não viu sinal da garota. - Ela pegou uma tocha e foi para lá - disse-lhe Grigg, o Bode, apontando para o fundo da caverna. Jon seguiu na direção indicada e deu por si numa sombria sala interior, vagueando um labirinto de colunas e estalactites. Ela não pode estar aqui, estava pensando quando ouviu sua gargalhada. Virou-se para o som, mas dez passos depois estava num beco sem saída, de frente para uma parede lisa de calcário branco e rosa. Confuso, voltou por onde tinha vindo, e então viu-o: um buraco escuro por baixo de uma saliência de pedra úmida. Ajoelhou-se, escutou, ouviu o tênue som de água. - Ygritte? - Aqui - veio a voz dela, com um leve eco. Jon teve de engatinhar uma dúzia de passos até a caverna se abrir à sua volta. Quando voltou a ficar em pé, os olhos precisaram de um momento para se ajustarem. Ygritte tinha trazido uma tocha, mas não havia nenhuma outra luz. Ela encontrava-se junto a uma pequena queda-dagua que jorrava de uma fissura na rocha para uma larga lagoa escura. As chamas amarelas e laranja brilhavam na água verde-clara. - O que você está fazendo aqui? - perguntou a ela. - Ouvi água. Quis ver pra onde ia a gruta. - Apontou com a tocha. - Há uma passagem que desce mais. Segui-a durante cem passos antes de voltar. - Um beco sem saída?
- Não sabe nada, Jon Snow. Continuava, e continuava, e continuava. Há centenas de cavernas nestes montes, e lá embaixo todas se juntam. Há até um caminho por baixo da Muralha. O Caminho de Gorne. - Gorne - disse Jon. - Gorne foi Rei-para-lá-da-Muralha. - Sim - disse Ygritte. - Com o irmão Gendel, há três mil anos. Levaram uma tropa do povo livre pelas cavernas e a patrulha não percebeu. Mas quando saíram, os lobos de Winterfell caíram sobre eles. - Houve uma batalha - recordou Jon. - Gorne matou o Rei do Norte, mas o filho deste pegou o estandarte e tomou a coroa de sua cabeça, e abateu Gorne, por sua vez. - E o som das espadas acordou os corvos em seus castelos, e saíram todos de preto pra pegar o povo livre pela retaguarda. - Sim. Gendel tinha o rei ao sul, os Umber a leste e a Patrulha a norte. Ele também morreu. - Não sabe nada, Jon Snow. Gendel não morreu. Ele abriu caminho com a espada, por entre os corvos, e levou seu povo de volta pro norte com os lobos uivando nos seus calcanhares. Mas Gendel não conhecia as cavernas como Gorne, e escolheu um caminho errado. - Agitou a tocha de um lado para o outro, para que as sombras saltassem e se movessem. - Desceu mais, e mais, e quando tentou voltar pra trás, os caminhos que pareciam familiares acabavam em pedra em vez de céu. Pouco depois, os seus archotes começaram a se apagar, um por um, até que no fim não havia nada além de escuridão. O povo de Gendel nunca mais foi visto, mas nas noites calmas é possível ouvir os filhos dos filhos de seus filhos soluçando por baixo dos montes, ainda à procura de uma saída. Está ouvindo? Consegue ouvi-los? Tudo que Jon ouvia era a água que caía e o tênue crepitar das chamas. - Esse caminho por baixo da Muralha também se perdeu? - Alguns procuraram-no. Aqueles que descem demais encontram os filhos de Gendel, e os filhos de Gendel sempre tão com fome. - Sorrindo, encaixou cuidadosamente a tocha num entalhe de rocha e dirigiu-se a ele. - No escuro não há nada pra comer além de carne - sussurrou, mordendo-lhe o pescoço. Jon enfiou o nariz nos cabelos dela e encheu-o com seu cheiro. - Parece a Velha Ama contando a Bran uma história de monstros. Ygritte deu um murro no ombro dele. - Ah, sou uma velha, é? - E mais velha do que eu. - Sim, e mais sábia. Você não sabe nada, Jon Snow. - Empurrou-o e contorceu-se para fora de seu vestido de pele de coelho. - O que você está fazendo?
- Estou mostrando a idade que tenho. - Desatou a camisa de pele de veado, atirou-a para o lado, tirou pela cabeça todas as três camisolas de lã que usava por baixo. - Acho que devia me ver. - Nós não devíamos... - Devíamos. - Os seios dela saltitaram quando se equilibrou num pé só para puxar uma bota, e depois saltou para o outro pé, para tratar da outra. Seus mamilos eram grandes círculos cor-de-rosa. - Você também - disse Ygritte enquanto puxava para baixo os calções de pele de ovelha de Jon. - Se quer ver, precisa mostrar. Não sabe nada, Jon Snow, - Sei que desejo você - ouviu sua própria voz dizer, esquecido de todos os votos e honra. Ela estava na sua frente, nua como no dia em que nasceu, e ele estava duro como a rocha que os rodeava. Aquela altura já tinha estado dentro dela meia centena de vezes, mas sempre por baixo das peles, com outras pessoas em volta. Nunca vira como ela era bela. As pernas de Ygritte eram magras, mas bem torneadas; os pelos no local onde as coxas se juntavam, de um vermelho mais vivo do que os que tinha na cabeça. Será que isso faz dela ainda mais sortuda? Puxou-a para mais perto. - Adoro seu cheiro - disse. - Adoro seus cabelos vermelhos. Adoro sua boca, e o jeito como me beija. Adoro seu sorriso. Adoro seus peitos. - Beijou-os, primeiro um e depois o outro. - Adoro suas pernas magras, e o que está entre elas. - Ajoelhou-se para beijá-la ali, a princípio levemente em seu monte de vênus, mas Ygritte abriu um pouco as pernas e ele viu o cor-de-rosa no interior e beijou-o também, e saboreou-o. Ela soltou um pequeno arquejo. - Se adora tudo isso, por que é que ainda tá vestido? - sussurrou. - Não sabe nada, Jon Snow. Naâ... oh. Ok OHHH. Mais tarde, ela ficou quase acanhada, ou tão acanhada quanto Ygritte poderia ficar. - Aquela coisa que você fez - disse, deitada com ele na pilha de roupas. - Com a sua... boca. - Hesitou. - E isso... é isso que os senhores fazem com suas senhoras, lá no sul? - Acho que não. - Nunca ninguém havia dito a Jon o que os senhores faziam com as suas senhoras. - Eu só... quis beijar ali, foi só isso. Parece que você gostou. - Sim. Eu... gostei um bocadinho. Ninguém lhe ensinou aquilo? - Não houve ninguém - confessou ele. - Só você. - Um donzelo - brincou ela. - Era um donzelo. Ele deu-lhe um beliscão brincalhão no mamilo mais próximo. - Eu era um homem da Patrulha da Noite. - Era, ouviu-se dizer. O que seria agora? Não queria debruçar-se sobre esse assunto. - Você era donzela? Ygritte apoiou-se num cotovelo.
- Tenho dezenove anos, sou uma esposa de lanças e beijada pelo fogo. Como poderia ser donzela? - Quem foi? - Um rapaz numa festa, há cinco anos. Tinha vindo comerciar, com os irmãos, e seus cabelos eram como os meus, beijados pelo fogo, por isso pensei que ele devia ter sorte. Mas era fraco. Quando voltou pra me raptar, o Lança-Longa quebrou o braço dele e botou-o para correr, e ele não voltou a tentar, nem uma vez. - Então não foi o Lança-Longa? - Jon estava aliviado. Gostava do Lança-Longa, com seu rosto simples e modos amigáveis. Ela esmurrou-o. - Isso é nojento. Você se deitaria com a sua irmã? - Lança-Longa não é seu irmão. - E da minha aldeia. Não sabe nada, Jon Snow. Um homem de verdade rapta uma mulher de longe, pra fortalecer o clã. As mulheres que se deitam com irmãos, pais ou gente do clã ofendem os deuses e são amaldiçoadas com filhos fracos ou doentes. Ou até monstros. - Craster casa com as próprias filhas - destacou Jon. Ela voltou a esmurrá-lo. - Craster é mais da sua gente do que da nossa. O pai dele era um corvo que raptou uma mulher da aldeia de Brancarbor, mas depois de tê-la, voou de volta pra sua Muralha. Uma vez, ela foi a Castelo Negro pra mostrar o filho ao corvo, mas os irmãos sopraram seus berrantes e botaram a mulher pra correr. O sangue do Craster é preto, e ele carrega uma pesada maldição. - Passou os dedos levemente pela barriga dele. -Antes tinha medo de que você fizesse o mesmo. Que fugisse de volta pra Muralha. Você nunca soube o que fazer depois de me raptar. Jon sentou-se. - Ygritte, eu não raptei você. - Raptou, sim. Saltou da montanha e matou o OrelI, e antes de eu conseguir chegar ao machado tinha uma faca encostada na minha garganta. Pensei que você ia me possuir naquela hora, ou me matar, ou talvez as duas coisas, mas não. E quando lhe contei a história do Bael, o Bardo, e do modo como ele colheu a rosa de Winterfell, imaginei que ia me colher com certeza na hora, mas não. Não sabe nada, Jon Snow. - Dirigiu-lhe um sorriso acanhado. - Mas pode ser que ande aprendendo umas coisas. De repente, Jon reparou que a luz oscilava em volta de Ygritte. Olhou ao redor. - E melhor subirmos. A tocha está quase no fim. - O corvo tá com medo dos filhos de Gendel? - disse ela, com um sorriso. - E rapidi- nho pra chegar lá em cima, e eu ainda não acabei o
que queria fazer com você, Jon Snow. - Voltou a puxá-lo para baixo e montou nele. - Não quer... - Hesitou, - O quê? - perguntou ele, enquanto a tocha começava a se apagar. - Fazer aquilo de novo? - disse Ygritte, muito depressa. - Com a boca? O beijo do senhor? E eu... eu podia ver se você também gosta. Quando a tocha se extinguiu, Jon Snow já não se importou. A culpa chegou mais tarde, mas mais fraca do que antes. Se isso é assim tão errado, pensou, por que os deuses fizeram com que desse uma sensação tão boa? A gruta estava negra como breu quando terminaram. A única luz era o tênue brilho da passagem de volta à caverna maior, onde ardiam vinte fogueiras. Pouco depois andavam tateando e esbarrando um no outro enquanto tentavam se vestir no escuro, Ygritte tropeçou e caiu na lagoa, e soltou um grito devido à água gelada. Quando Jon riu, ela puxou-o também para dentro. Lutaram e espirraram água na escuridão, e então ela acabou de novo nos braços dele, e descobriram que, afinal, ainda não tinham terminado. - Jon Snow - disse-lhe Ygritte, depois de ele gastar a sua semente dentro dela -, não se mexa agora, querido. Gosto de sentir você aí, gosto mesmo. E se a gente não voltasse pra junto do Styr e do Jarl? E se fôssemos pra dentro, pra nos juntarmos aos filhos de Gendel? Nunca mais quero sair desta gruta, Jon Snow. Nunca mais.

Davos

A cela era mais quente do que uma cela tinha direito de ser.  Sim, era escura. Uma tremeluzente luz laranja caía através das antigas barras de ferro, vinda do archote enfiado na arandela presa à parede do lado de fora, mas a metade interior da cela permanecia mergulhada em sombras. Também era úmida, como se pode' ria esperar de uma ilha como Pedra do Dragão, onde o mar nunca estava longe. E havia ratazanas, tantas quantas qualquer masmorra podia esperar ter e mais algumas. Mas Davos não podia se queixar de frio. As passagens de pedra lisa sob a grande massa de Pedra do Dragão eram sempre quentes, e Davos ouvira dizer com freqüência que ficavam mais quentes à medida que se descia. Calculava estar muito abaixo do castelo, e sentia a parede de sua cela quente quando encostava a palma da mão nela. As velhas histórias talvez fossem verdadeiras, e Pedra do Dragão talvez tivesse sido construída com pedras do inferno. Estava doente quando o levaram até ali. A tosse que o vinha atormentando desde a batalha piorara, e tinha sido também atacado por uma febre. Seus lábios racharam, enchendo- -se de bolhas sangrentas, e o calor da cela não o impedira de ter calafrios. Não resistirei por muito tempo, lembrava-se de ter pensado. Morrerei em breve, aqui na escuridão. Davos descobriu rapidamente que nisso se enganava, tal como em muitas outras coisas. Lembrava-se vagamente de mãos gentis e de uma voz firme, e do jovem Meistre Pylos a olhá-lo de cima. Deram-lhe caldo quente de alho para beber e leite de papoula para lhe tirar as dores e os arrepios. A papoula fez com que dormisse, e enquanto dormia colaram sanguessugas na sua pele, para drenar o sangue ruim. Pelo menos fora isso que concluíra das marcas de sanguessugas que tinha nos braços quando acordou. Pouco tempo depois, a tosse parou, as bolhas desapareceram, e o caldo começou a vir com pedaços de peixe branco, e também cenouras e cebolas, E um dia percebeu que se sentia mais forte do que se sentira desde que o Betha Negra havia se estilhaçado sob os seus pés e o atirado ao rio, Tinha dois carcereiros para cuidar de si. Um era largo e atarracado, com grandes ombros e mãos enormes e fortes. Usava uma brigantina de couro pontilhada de tachões de ferro, e uma vez por dia trazia a Davos uma tigela de mingau de aveia. Às vezes adoçava-a com mel ou despejava nela um pouco de leite. O outro carcereiro era mais velho, curvado e pálido, com cabelos oleosos, sujos, e pele áspera. Usava um
gibão de veludo branco com um anel de estrelas bordado no peito, em fio de ouro. Caía mal nele, ao mesmo tempo curto e largo demais, e estava sujo e rasgado. Esse trazia a Davos pratos de carne com purê, ou guisado de peixe, e uma vez até tinha lhe trazido metade de um empadão de lampreia. A lampreia estava tão condimentada que Davos não conseguira mantê-la no estômago, mesmo assim era um raro acepipe para um prisioneiro numa masmorra. Nem sol nem luz brilhavam nas masmorras; nenhuma janela perfurava as espessas paredes de pedra. A única maneira de distinguir o dia da noite era através dos carcereiros. Nenhum dos homens falava com ele, embora Davos soubesse que não eram mudos; às vezes ouvia-os trocar algumas palavras rudes na troca da guarda. Nem sequer lhe disseram como se chamavam, por isso deu-lhes nomes inventados. Ao baixo e forte chamou Mingau, ao curvado e pálido, Lampreia, devido ao empadão. Marcava a passagem dos dias pelas refeições que eles traziam e pelas trocas de archotes na arandela fora de sua cela. Na escuridão, um homem sente-se só e anseia pelo som da voz humana, Davos dirigia-se aos carcereiros sempre que eles vinham à cela, fosse para lhe trazer comida, fosse para trocar o balde dos dejetos. Sabia que os homens seriam surdos a súplicas por liberdade ou misericórdia; em vez disso fazia-lhes perguntas, na esperança de que talvez um dia algum deles pudesse responder."Que notícias há da guerra?" perguntava, e"0 rei está bem?". Pedia notícias do filho Devan, e da Princesa Shireen, e de Salladhor Saan. "Como anda o tempo?", perguntava, e "As tempestades de outono já começaram?" "Os navios ainda percorrem o mar estreito?" Não importava o que perguntava; eles nunca respondiam, embora às vezes Mingau lhe dirigisse um olhar, fazendo Davos pensar durante meio segundo que ele se preparava para falar. Com o Lampreia nem isso havia. Para ele, não sou um homem, pensou Davos, não passo de uma pedra que come, caga e/ala. Passado algum tempo, decidiu que gostava muito mais do Mingau. Este parecia pelo menos saber que ele estava vivo, e havia uma estranha espécie de bondade no homem. Davos suspeitava que ele alimentava as ratazanas; era por isso que havia tantas. Uma vez pensou ter ouvido o carcereiro falar com elas como se fossem crianças, mas isso talvez tivesse sido apenas um sonho. Eles não pretendem me deixar morrer, compreendeu. Estão me mantendo vivo, para um propósito qualquer. Não gostava de pensar no que esse propósito poderia ser. Lorde Sun- glass fora confinado nas celas sob Pedra do Dragão durante algum tempo, tal como os filhos de Sor Hubard Rambton; todos acabaram na pira. Devia ter me entregado ao mar, pensou Davos, sentado, fitando o archote do outro lado das
barras. Ou deixar que a vela passasse por mim, para morrer em meu rochedo. Prefiro alimentar caranguejos a chamas, Então, uma noite, enquanto terminava o jantar, Davos sentiu que um estranho brilho o inundava. Olhou para cima por entre as barras e ali estava ela, vestida com um cintilante tom de escarlate, com seu grande rubi na garganta, e os olhos vermelhos brilhando tanto quanto o archote que a banhava. - Melisandre - disse, com uma calma que não sentia. - Cavaleiro das Cebolas - respondeu ela, igualmente calma, como se os dois tivessem se encontrado numa escada ou no pátio e trocassem saudações delicadas. - Está bem? - Melhor do que já estive. - Falta alguma coisa a você? - O meu rei. O meu filho. Ambos me fazem falta. - Pôs a tigela de lado e levantou- -se, - Veio me queimar? Os estranhos olhos vermelhos da mulher estudaram-no através das barras. - Este é um mau lugar, não é? Um lugar escuro e malcheiroso. O bom sol aqui não brilha, e a lua brilhante também não. - Ergueu uma mão para o archote na arandela da parede. - Isto é tudo que existe entre você e as trevas, Cavaleiro das Cebolas. Este pequeno fogo, esta dádiva de R'hllor. Devo apagá-la? - Não. - Davos aproximou-se das barras. - Por favor. - Não achava que conseguisse agüentar ser deixado só na escuridão completa, sem nada além das ratazanas para lhe fazer companhia. Os lábios da mulher vermelha curvaram-se para cima num sorriso. - Então acabou amando o fogo, ao que parece. - Preciso do archote. - Suas mãos se abriram e fecharam. Não lhe suplicarei. Não suplicarei. - Sou como este archote, Sor Davos. Ambos somos instrumentos de R'hllor. Fomos feitos para o mesmo fim... para manter a escuridão afastada. Acredita nisso? - Não. - Talvez devesse ter mentido e dito o que ela queria ouvir, mas Davos estava habituado demais a falar a verdade. - Você é a mãe das trevas. Eu vi isso sob Ponta Tempestade, quando pariu diante de meus olhos. - Estará o bravo Sor Cebolas assim tão assustado por uma sombra passageira? Se é assim, anime-se. As sombras só vivem quando são geradas pela luz, e os fogos do rei ardem tão fracos que não me atrevo a tirar-lhe mais para fazer outro filho. Isso poderia até matá-lo. - Melisandre aproximou-se. - Mas com outro homem... um homem cujas chamas ainda se erguem quentes... se realmente deseja servir à causa
do seu rei, venha uma noite aos meus aposentos. Poderia dar-lhe prazer tal como nunca conheceu e, com seu fogo da vida, poderia gerar... - ... um horror. - Davos afastou-se dela. - Não quero nada com a senhora. Ou com o seu deus. Que os Sete me protejam. Melisandre suspirou, - Eles não protegeram Guncer Sunglass. Rezava três vezes por dia, e usava sete estrelas de sete pontas no escudo, mas quando R'hllor lhe estendeu a mão, suas preces transformaram-se em gritos, e ele ardeu. Por que agarrar-se a esses falsos deuses? - Adorei-os toda a minha vida. - Toda a sua vida, Davos Seaworth? Tanto faz dizer que era assitn ontem. - Sacudiu a cabeça, tristemente. - Nunca temeu dizer a verdade a reis, por que é que mente a si mesmo? Abra os olhos, sor cavaleiro. - O que quer que eu veja? - O modo como o mundo é feito. A verdade está à sua volta, basta olhar para ela. A noite é escura e cheia de terrores, o dia, luminoso, belo e cheio de esperança. Uma é negra, o outro, branco. Há gelo e há fogo. Ódio e amor. Amargor e doçura. Macho e fêmea. Dor e prazer. Inverno e verão. Mal e bem. - Ela deu um passo em sua direção. - Vida e morte. Em toda parte há opostos. Em toda parte há a guerra. - A guerra? - perguntou Davos. - A guerra - afirmou ela. - Existem dois, Cavaleiro das Cebolas. Nem sete, nem um, nem cem ou mil. Dois! Acha que atravessei metade do mundo para colocar mais um rei frívolo em mais um trono vazio? A guerra é travada desde o começo dos tempos, e, antes de chegar ao fim, todos os homens devem escolher de que lado se encontram. De um lado está R'hllor, o Senhor da Luz, o Coração de Fogo, o Deus da Chama e da Sombra. Contra ele ergue-se o Grande Outro, cujo nome não pode ser pronunciado, o Senhor das Trevas, a Alma do Gelo, o Deus da Noite e do Terror. A nossa escolha não é entre Baratheon e Lannister, entre Greyjoy e Stark. O que escolhemos é a morte ou a vida. A escuridão ou a luz. - Agarrou as barras da cela com suas mãos esguias e brancas. O grande rubi em sua garganta pareceu pulsar com esplendor próprio. - Portanto, diga-me, Sor Davos Seaworth, e diga-me a verdade: o seu coração arde com a luz brilhante de Rhllor? Ou é negro, frio e cheio de vermes? - Estendeu a mão através das barras e pousou três dedos no peito de Davos, como que para sentir a sua verdade através de carne, lã e couro. - Meu coração - disse lentamente Davos - está cheio de dúvidas. Melisandre suspirou. - Ahhhh, Davos. O bom cavaleiro é honesto até o fim, mesmo no seu dia de trevas. É bom que não tenha mentido para mim. Eu teria sabido.
Os servos do Outro freqüentemente escondem corações negros sob uma luz vivida, por isso R'hllor dá aos seus sacerdotes o poder de ver através das falsidades, - Afastou-se da cela com um passo ligeiro. - Por que queria me matar? - Direi - disse Davos - se me disser quem me traiu. - Só poderia ter sido Salladhor Saan, mas ainda agora rezava para que não tivesse sido. A mulher vermelha soltou uma gargalhada. - Ninguém o traiu, Cavaleiro das Cebolas. Vi suas intenções nas minhas chamas. As chamas. - Se pode ver o futuro nessas chamas, como foi que ardemos na Água Negra? Entregou meus filhos ao fogo... meus filhos, meu navio, meus homens, todos queimando... Melisandre balançou a cabeça. - Trata-me injustamente, Cavaleiro das Cebolas. Esses incêndios não foram meus. Se eu estivesse com vocês, sua batalha teria tido um final diferente. Mas Sua Graça estava rodeado de descrentes, e seu orgulho mostrou-se mais forte do que sua fé. A punição foi severa, mas aprendeu com o erro. Então meus filhos nada mais foram do que uma lição para um rei? Davos sentiu sua boca contrair. - Agora é noite nos seus Sete Reinos - prosseguiu a mulher vermelha mas logo o sol voltará a se levantar. A guerra continua, Davos Seaworth, e certos homens aprenderão em breve que até uma brasa entre cinzas ainda pode causar um grande incêndio, O velho meistre olhava para Stannis e via apenas um homem. Você vê um rei. Ambos se enganam. Ele é o escolhido do Senhor, o guerreiro do fogo. Vi-o à frente da luta contra a escuridão, vi-o nas chamas. As chamas não mentem, caso contrário você não estaria aqui. Isso também está escrito na profecia. Quando a estrela vermelha sangra e as trevas reúnem forças, Azor Ahai renascerá por entre fumaça e sal, para acordar dragões da pedra. A estrela sangrenta já chegou e partiu, e Pedra do Dragão é o local de fumaça e sal. Stannis Baratheon é Azor Ahai renascido! - Os olhos vermelhos da mulher ardiam como fogueiras gêmeas, e pareceram fitar as profundezas da alma de Davos. - Não acredita em mim. Até agora duvida da verdade de Rhllor... e no entanto, serviu-o mesmo assim, e voltará a servi-lo. Vou deixá-lo aqui para pensar em tudo o que lhe disse. E, porque Rhllor é a fonte de todo o bem, deixarei também o archote. Com um sorriso e um rodopio de saias escarlates, desapareceu. Só o seu odor permaneceu depois de ela partir. Isso e o archote. Davos abaixou-se até o chão da cela e abraçou os joelhos. A luz inconstante do archote varria-o. Depois que os passos de Melisandre deixaram de ser
ouvidos, o único som que ficou foi o arranhar das ratazanas. Gelo efogo, pensou. Branco e preto. Trevas e luz. Davos não podia negar o poder do deus dela. Tinha visto a sombra sair do ventre de Melisandre, e a sacerdotisa sabia coisas que não tinha como saber. Ela viu as minhas intenções nas chamas. Era bom saber que Salla não o vendera, mas a idéia de a mulher vermelha espiar seus segredos com suas fogueiras inquietava- -o mais do que conseguiria exprimir. E o que ela quis dizer quando falou que eu servi seu deus e voltarei a servi-lo? Também não tinha gostado disso. Ergueu os olhos para fitar o archote. Olhou-o durante muito tempo, sem piscar, observando as chamas mudando e tremeluzindo. Tentou ver para além delas, espreitar através da cortina de fogo e vislumbrar o que quer que vivesse lá atrás... mas nada havia, apenas fogo, e após algum tempo seus olhos começaram a lacrimejar. Ofuscado e cansado, Davos enrolou-se na palha e entregou-se ao sono. Três dias mais tarde - bem, o Mingau tinha vindo três vezes e o Lampreia, duas - Davos ouviu vozes à porta de sua cela. Sentou-se de imediato, com as costas apoiadas na parede de pedra, escutando os sons de uma luta. Aquilo era novo, uma mudança em seu mundo imutável. O ruído vinha do lado esquerdo, onde os degraus levavam à luz do dia. Conseguia ouvir uma voz de homem, suplicando e gritando. - ... loucura'. - o homem dizia quando surgiu à vista de Davos, arrastado entre dois guardas com corações flamejantes no peito. Mingau vinha à frente deles, fazendo tilintar um anel cheio de chaves, e Sor Axell Florent caminhava atrás. - Axell - disse o prisioneiro em tom de desespero -, pelo apreço que tem por mim, solte-mel Não pode fazer isso, eu não sou nenhum traidor. - Era um homem de certa idade, alto e esguio, com cabelos prateados, barba pontiaguda e rosto longo e elegante retorcido de medo. - Onde está Se- lyse, onde está a rainha? Exijo vê-la. Que os Outros carreguem todos vocês! Soltem-mel Os guardas não prestaram atenção ao alarido que o homem fazia. - Aqui? - perguntou o Mingau em frente à cela. Davos ficou em pé. Por um instante pensou em tentar precipitar-se sobre eles quando a porta fosse aberta, mas isso era uma loucura. Eles eram muitos, os guardas tinham espadas, e Mingau era forte como um touro. Sor Axell assentiu bruscamente para o carcereiro. - Que os traidores gozem da companhia um do outro. - Eu não sou traidor coisa nenhuma'. - guinchou o prisioneiro enquanto Mingau destrancava a porta. Embora estivesse vestido de forma simples, com um gibão de lã cinza e calções pretos, sua maneira de falar identificava-o como nobre. Seu nascimento não o beneficiará aqui, pensou Davos.
Mingau abriu as barras por completo, Sor Axell fez um aceno, e os guardas atiraram seu cativo, de cabeça, para dentro da cela. O homem tropeçou e poderia ter caído, mas Davos agarrou-o, Ele libertou-se imediatamente com uma sacudida e correu cambaleando para a porta, apenas para vê-la fechada na sua cara pálida e mimada. - Não - gritou. - Nããããáão. - Toda a força abandonou de repente suas pernas e ele deslizou lentamente para o chão, agarrando-se às barras de ferro. Sor Axell, Mingau e os guardas já tinham se virado para partir. - Não podem fazer isso - gritou o prisioneiro para as costas dos homens que se afastavam. - Eu sou a Mão do Rei! Foi então que Davos o reconheceu. - E Alester Florent. O homem virou a cabeça. - Quem...? - Sor Davos Seaworth. Lorde Alester pestanejou. - Seaworth... o cavaleiro das cebolas. Tentou assassinar Melisandre. Davos não negou. - Em Ponta Tempestade usou uma armadura vermelho-dourada, com flores de lápis- -lazúli incrustadas na placa de peito. - Estendeu uma mão para ajudar o outro homem a pôr-se em pé. Lorde Alester sacudiu a palha imunda de suas roupas. - Eu... eu devo desculpar-me por minha aparência, sor. Minhas arcas foram perdidas quando os Lannister invadiram nosso acampamento. Escapei sem nada exceto a cota de malha que trazia no corpo e os anéis nos dedos. E ainda usa esses anéis, reparou Davos, que perdera até parte de seus dedos, - Sem dúvida que algum ajudante de cozinha ou palafreneiro anda agora se pavo- neando por Porto Real com o meu gibão fendido de veludo e o manto cravejado de jóias - prosseguiu Lorde Alester, absorto. - Mas a guerra tem seus horrores, como todos sabem. Sem dúvida você também sofreu suas próprias perdas. - Meu navio - disse Davos. - Todos os meus homens. Quatro de meus filhos. - Que o... que o Senhor da Luz os faça atravessar as trevas até um mundo melhor - disse o outro homem. Que o Pai os julgue com justiça, e a Mãe lhes conceda misericórdia, pensou Davos, mas guardou a prece para si. Os Sete não tinham mais lugar em Pedra do Dragão. - Meu filho está a salvo em Águas Claras - prosseguiu o lorde -, mas perdi um sobrinho no Fúria. Sor Imry, filho de meu irmão Ryam.
Foi Sor Imry Florent quem os levou cegamente pela Torrente da Água Negra adentro, com todos os remos em ação, sem prestar atenção nas pequenas torres de pedra na foz do rio. Não era provável que Davos se esquecesse dele. - Meu filho Maric era mestre dos remadores de seu sobrinho. - Lembrou-se do último vislumbre que tivera do Fúria, envolto em fogovivo. - Houve alguma notícia de sobreviventes? - O Fúria queimou e afundou com toda a tripulação - disse sua senhoria. - Seu filho e meu sobrinho perderam-se, com um número incontável de outros bons homens. A própria guerra foi perdida nesse dia, sor. Esse homem está derrotado. Davos recordou a conversa de Melisandre a respeito das brasas nas cinzas gerarem grandes incêndios. Não me admira que tenha acabado aqui - Sua Graça nunca se renderá, senhor. - Uma loucura, isso é uma loucura. - Lorde Alester voltou a se sentar no chão, como se o esforço de ficar em pé por um momento tivesse sido excessivo para ele. - Stannis Baratheon nunca ocupará o Trono de Ferro. Será traição dizer a verdade? Uma verdade amarga, mas não menos verdadeira por isso. Já não tem frota, à exceção dos lisenos, e Salladhor Saan fugirá assim que avistar uma vela Lannister. A maior parte dos senhores que apoiaram Stannis passaram para o lado de Joffrey ou morreram... - Até os senhores do mar estreito? Os senhores juramentados a Pedra do Dragão? Lorde Alester abanou debilmente as mãos. - Lorde Celtigar foi capturado e rendeu-se. Monford Velaryon morreu com o seu navio, a mulher vermelha queimou Sunglass, e Lorde Bar Emmon tem quinze anos, é gordo e frágil. São esses os senhores do mar estreito. Só restam a Stannis as forças da Casa Florent, contra todo o poderio de Jardim de Cima, Lançassolar e Rochedo Casterly, e agora também da maior parte dos senhores da tempestade. A melhor esperança que resta é tentar salvar qualquer coisa com a paz. Foi isso que tentei fazer. Pela bondade dos deuses, como podem chamar isso de traição? Davos franziu a testa. - Senhor, o que fez? - Traição, não. Traição, nunca. Adoro Sua Graça mais do que qualquer outro homem. Minha própria sobrinha é a rainha dele, e permaneci fiel quando homens mais sensatos desertaram. Sou sua Mão, a Mão do Rei, como posso ser um traidor? Só quis salvar nossas vidas e... honra... sim. - Lambeu os lábios. - Escrevi uma carta. Salladhor Saan jurou que tinha um homem que podia levá-la a Porto Real, ao Lorde Tywin, Sua senhoria
é um... um homem de razão, e os meus termos... os termos eram justos... mais do que justos. - Que termos eram esses, senhor? - Isto aqui está imundo - disse de repente Lorde Alester. - E esse cheiro... o que é esse cheiro? - O balde - disse Davos com um gesto. - Aqui não temos latrina. Que termos? Sua senhoria fitou o balde, horrorizado. - Que Lorde Stannis retiraria sua pretensão ao Trono de Ferro e se retrataria de tudo o que havia dito a respeito da bastardia de JofFrey, sob a condição de ser aceito de volta à paz do rei e confirmado como Senhor de Pedra do Dragão e Ponta Tempestade. Jurei fazer o mesmo, em troca da devolução da Fortaleza de Águas Claras e de todas as nossas terras. Pensei... Lorde Tywin compreenderia o bom senso de minha proposta. Ele ainda precisa lidar com os Stark e também com os homens de ferro. Sugeri selarmos o acordo casando Shireen com o irmão de JofFrey, Tommen. - Balançou a cabeça. - Os termos... eram os melhores que poderemos alcançar. Até você certamente compreende? - Sim - disse Davos -, até eu. - A não ser que Stannis gerasse um filho, um casamento assim significaria que Pedra do Dragão e Ponta Tempestade passariam um dia para as mãos de Tommen, o que sem dúvida agradaria a Lorde Tywin. Ao mesmo tempo, os Lannister teriam Shireen como refém para se certificarem de que Stannis não causaria mais rebeliões, - E o que disse Vossa Graça quando lhe propôs esses termos? - Ele está sempre com a mulher vermelha, e... receio que não esteja no seu juízo completo. Essa conversa sobre um dragão de pedra... loucura, digo eu, pura loucura. Será que não aprendemos nada com Aerion Fogovivo, com os nove magos, com os alquimistas? Será que não aprendemos nada com Solarestival? Nunca bem algum veio desses sonhos de dragões, foi o que eu disse a Axell. A minha maneira era melhor. Mais segura. E Stannis deu-me seu selo, deu-me licença para governar. A Mão fala com a voz do rei. - Nisso, não. - Davos não era cortesão, e sequer tentou amaciar as palavras, - A rendição não existe em Stannis, enquanto souber que suas razões são justas. Da mesma forma que não pode desdizer as palavras contra JofFrey, quando as crê verdadeiras. E, quanto ao casamento, Tommen nasceu do mesmo incesto que JofFrey, e Sua Graça antes gostaria de ver Shireen morta do que casada com alguém assim. Uma veia latejava na testa de Florent. - Ele não tem outra opção. ~ Engana-se, senhor. Ele pode escolher morrer como rei. - E levar-nos com ele? E isso que deseja, Cavaleiro das Cebolas?
- Não. Mas sou um homem do rei, e não farei qualquer paz sem a permissão dele. Lorde Alester fitou-o impotente por um longo momento e então começou a chorar.